Não é um pesadelo
A situação absurda, na qual o desfecho favorável torna-se cada vez mais impossível, não é privilégio da literatura. O cotidiano está repleto de acontecimentos destituídos de sentido, verdadeiros despautérios. Talvez por essa razão as obras de Franz Kafka – escritor judeu tcheco que escrevia em alemão, falecido aos 40 anos, em 1924 – estejam publicadas em centenas de línguas: lemos nessas histórias muito do que enfrentamos em nossas vidas. São, guardadas as devidas proporções, espelhos do nosso dia-a-dia.
Eu próprio vivo uma situação kafkiana há vários anos. Moro defronte aos fundos de uma tradicional escola paulistana, o Colégio Santa Amália, cuja mantenedora é a conhecidíssima Liga das Senhoras Católicas. Quando decidi mudar-me para este apartamento, levei em consideração a proximidade do metrô, a padaria da esquina, o relativo silêncio do prédio – habitado por uma maioria de idosos – e, claro, os valores do aluguel e do condomínio, que me pareceram baixos, se comparados aos preços de mercado. Lembro-me de, em minha primeira visita, ter observado as crianças correndo e gritando no pátio e nas quadras, mas considerei a cena e o barulho perfeitamente aceitáveis. Contudo, antes de assinar o contrato, deveria ter me lembrado daquele sábio provérbio popular: “O barato sai caro”.
Não era à toa que o apartamento estava sem inquilinos há anos. O barulho produzido pela escola vai muito além dos gritos infantis durante os intervalos. As atividades cívicas, as festas, as gincanas, os campeonatos – tudo transcorre sob a minha janela. Às quintas-feiras, pontualmente às 7 horas, canta-se o hino nacional. Ou melhor, toca-se o hino, numa gravação que deve ter um coral de mil vozes, no último volume, enquanto as caixas acústicas da quadra repercutem a música por todo o quarteirão. Trata-se de um amanhecer forçadamente cívico, que me transforma num patriota mal-humorado. A saída dos alunos – no final dos períodos da manhã e da tarde – é comandada por funcionários que, no portão, usando um microfone, avisam as crianças, uma a uma, sobre a chegada dos pais. Assim, diariamente, sou obrigado a acompanhar duas fastidiosas ladainhas, declamadas pelas vozes enfadonhas dos funcionários e repercutidas pelas mesmas caixas acústicas. Há também a campainha estridente, que marca, a cada 40 minutos, o final da aula, inclusive no período noturno e nos finais de semana, pois nunca é desligada. Há as torcidas organizadas durante os campeonatos, com suas cornetas e seus gritos de guerra. E os discursos monótonos da diretora, as orientações do professor de educação física, as festinhas de final de ano, as formaturas, os ensaios de quadrilha para as datas juninas... Enfim, a escola vive dentro do meu apartamento. Ou melhor: vibra no interior do meu cérebro.
No entanto, acreditem, sou um homem magnânimo. Compreendo que vivemos em um país subdesenvolvido, onde os princípios da cidadania e do respeito aos direitos em geral inexistem. Se não estivesse no Brasil, mas em um país no qual as pessoas se preocupam em não incomodar a vida alheia, esse tipo de problema já estaria solucionado.
Minha capacidade de ser indulgente termina, entretanto, quando, em pleno sábado, às nove da manhã, o amplificador é ligado e um funcionário irresponsável passa meia hora fazendo testes de som e provocando uma intermitente microfonia. E me revolto ao telefonar para a escola e ser atendido por um rapaz muito despachado, que ri da minha reclamação. E sinto nascer em meu peito uma fúria desagradável ao descobrir, em certo domingo, logo cedo, que a quadra foi cedida para um grupo religioso e serei forçado a participar, durante todo o dia, de um culto maçante, ouvindo cânticos que nada me dizem e o longo sermão de um padre cuja melhor característica está longe de ser a inteligência.
Não, não é um pesadelo nem um conto de Kafka, mas apenas o desvelo da Liga das Senhoras Católicas com a educação brasileira – acompanhado de um estranho menosprezo pelos vizinhos da escola.
(Crônica publicada na edição de 20 de abril de 2007 do jornal Bom Dia Jundiaí.)
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