Juan Carlos Onetti
O horário de verão terminou, mas os relógios permanecem adiantados uma hora. Sempre que entra na cozinha, olha para o relógio sobre a porta que leva ao quintal e repete o mesmo esforço de cálculo, submete-se à enfadonha tarefa de subtrair uma hora à marcada pelos ponteiros. Mas não trará a escada que enferruja sob a mangueira. Na verdade, não consegue distinguir o que é mais cansativo: ter de realizar as subtrações quando deseja saber a hora ou a idéia de caminhar até o fundo do quintal, pegar a escada, trazê-la até a porta da cozinha, abri-la, subir três degraus, retirar o relógio da parede, acertar os ponteiros, recolocá-lo no lugar, descer, fechar a escada e levá-la a algum outro ponto, certamente mais próximo do que a mangueira.
O sol faz as pedras estalarem, os cachorros dormem sob as árvores, as varejeiras dançam acima dos montes de lixo, e ele, com a mão direita erguendo as fitas coloridas que compõem a cortina, pegajosas de gordura, examina a lavanderia – onde a negra, deitada sobre o piso de cimento, faz a sesta – e, um pouco adiante, o quintal. Observa tudo que lhe pertence, da mancha de umidade sob o tanque à velha rede amontoada a um canto, junto ao limoeiro ressequido, onde a cadela deu cria há três ou quatro semanas. Olha atentamente, certo de que, nos limites estabelecidos pelo muro, cada ínfimo detalhe é seu; mas certo também de que nada lhe diz respeito.
Deixa a cortina cair e, arrastando os chinelos, caminha em direção ao quarto, deita-se na cama desarrumada, acomoda-se nos travesseiros, afasta com os pés o lençol e a colcha de chenile, e acende um cigarro. O silêncio pesa mais que o calor. O silêncio sob o qual a rua, o bairro, a vida parece afundar, quizilenta – quebrado apenas pela respiração dele, com o paletó do pijama aberto, sem botões, deixando à mostra o peito cortado por uma cicatriz, e a calça manchada de urina, o cordão da cintura remendado com dois ou três nós. Ele fuma, não se importando com as cinzas que caem na barba por fazer e sobre os cabelos desgrenhados, compridos.
O telefone tocará quando o relógio da cozinha bater cinco horas. Saberá, então, que são quatro, e que ela continua a insistir, apesar de suas recusas, de todo o desprezo que lhe reserva. Enquanto o barulho estridente irromper pela casa, renascerá nele a certeza de que terá de aceitá-la novamente – e que tudo voltará ao princípio, como aconteceu outras vezes. Ouvirá sua própria voz, sonolenta, dizendo-lhe mentiras, que a ama, que tudo está perdoado e que foi um tolo mandando-a embora. E dias depois ela voltará, semelhante a esta tarde de verão, vazia, inútil, morta, apesar de rir, caminhar pela casa, desdobrar-se em colocar ordem nas coisas. Devagar, tudo recomeçará, a nauseante sensação de incômodo, os gestos de impaciência, as brigas, a negra escondendo-se pelos cantos da casa, as ameaças, até chegarem aos bofetões, ele abrindo a gaveta da cômoda e arrancando de sob as meias o revólver, agitando-o no ar, aos gritos, mas sem nunca tirá-lo do coldre, enquanto ela também berra, agarra os próprios cabelos e chora, repetindo apenas “inferno, inferno”, entre soluços. A seguir partirá, enxotada, carregando a mala de couro com os cantos gastos e a fechadura que resiste duas ou três vezes até ser aberta.
Os meses passarão, as estações sucedendo-se, intermináveis, aprofundando a monotonia do tempo viciado em aguardar a morte. E o telefone voltará a tocar, dias seguidos, semanas, sempre na mesma hora, até que uma tarde qualquer, por um motivo torpe, ou por amar seu ódio, ele atenderá, ouvirá as lamúrias, as estúpidas promessas, vendo diante de si, pairando entre ele e o espelho do mancebo, a boca voraz, emplastada de batom ciclâmen. Cansado de segurar o aparelho, dirá apenas “venha”, sem desejá-la, mas precisando sentir-se vivo, nem que seja para reviver todas as cenas conhecidas, nem que seja, como agora, deitado na cama, enquanto traga o cigarro, para sentir-se como um personagem de Juan Carlos Onetti.
(Crônica publicada na edição de 16 de março de 2007 do jornal Bom Dia Jundiaí.)
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