Ela exige
sensibilidade, inteligência, domínio do próprio discurso. Obrigar uma frase a expressar
o contrário do que suas palavras dizem não é para o fulano que começou a
escrever ontem ou que, escrevendo há muito tempo, apenas se especializou em
copiar modelos ou repetir cacoetes.
Arte complexa, a
ironia comporta diversidade incrível de construções, servindo-se da entonação
da frase – e, portanto, da pontuação –, das repetições, do oximoro, da
hipérbole, do lítotes... e de mais um universo de recursos, infelizmente pouco
estudados na literatura brasileira.
Mas a ironia não
é apenas uma figura de linguagem. Não. Ela é, principalmente, uma forma de
olhar e compreender o mundo, de interpretar a realidade, de reconhecer os
limites – nossos e de outrem. O ironista sabe, como ensinou Isaiah Berlin, que “um
mundo sem conflitos de valores incompatíveis é um mundo completamente além de
nosso conhecimento”. Por isso ele contrasta, utilizando finíssimo humor, os
elementos do real, dos discursos: para denunciar as falsas certezas, a
arrogância – inclusive a epistêmica –, as proclamações demagógicas, os populistas
que guardam num bolso a receita infalível do Paraíso e, no outro, a propina que
cobram para manter o populacho hipnotizado pela cenoura inalcançável.
Ironizar é
colocar-se acima do seu próprio meio, sem medo de antagonizar os medíocres, os
hipócritas e os enfastiosos que sempre têm certeza absoluta sobre tudo – da
pureza inquestionável dos políticos e dos governantes à organização social dos lobos
e dos répteis, ainda que esses grupos pertençam, no fundo, à mesma espécie.
Apesar de
vivermos num país seriíssimo – o humor, aqui, poucas vezes consegue se colocar
acima do escracho, que não exige grande inteligência –, já tivemos escritores com
bons momentos de ironia, como Álvares de Azevedo, nos poemas geniais em que ridiculariza
o próprio romantismo, ou Gonçalves Dias no seu “Que coisa é um ministro”:
O Ministro é a fênix que renasce
Das cinzas de outro, que lhe a vez cedeu:
Nasce num dia como o sol que nasce,
Morre numa hora como vil sandeu!
Se nódoas tem, uma excelência as caia;
Mortal sublime, que não sabe rir,
Do vulgo inglório não pertence à laia,
Dará conselhos, se se lhe pedir!
Um bípede de pasta, não de barro,
Nos pés se firma por favor de Deus!
Dois fardas-rotas trotam trás do carro
Em ruços magros como dois lebréus.
Agora, sim: temos a pátria salva,
Não fará este o que já o outro fez!
Grande estadista! Basta ver-lhe a calva,
De homem assim não há dizer — talvez!
Vede-lhe a pasta, que de cheia estala
Só de projetos que farão feliz
A pátria ingrata, que seus feitos cala,
Ou mais que ingrata, o nome seu maldiz!
O ironista ri,
faz rir e ri de si próprio. E esse hábito saudável, essa forma especial de
lucidez, transforma-o num sábio conservador, cuja atitude é “quente e positiva
no que toca ao gozo das coisas e correspondentemente fria e crítica
relativamente à mudança e à inovação”, nas corretas palavras de Michael
Oakeshott.
Mas, acreditem, o
que escrevi até agora é apenas uma introdução ao texto “Um autor dos anos 2000”,
escrito por António Araújo, historiador português cujo blog, Malomil, me foi apresentado por Paulo
Cruchinho, um amigo do Facebook. Pouco importa se vocês conhecem ou não o autor de que Araújo fala – eu próprio jamais o li. O que importa é o devastador
exercício de ironia. Vejam como, parágrafo a parágrafo, Araújo desconstrói a tagarelice
do autor, exibindo-a na sua estrutura tosca e incongruente. É uma aula de ironia. Uma carapuça, aliás, que serve a muitos escritores contemporâneos
brasileiros.
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