Um lançamento da Editora Ecclesiae – a tradução, pela primeira vez no Brasil, da parte das Quaestiones disputatae dedicada ao “poder
de Deus” – recoloca uma pergunta que muitos hesitam em fazer: por que ler Tomás
de Aquino hoje?
Uma questão
pertinente para alguém que, como eu, não é filósofo e, muito menos, leitor
assíduo de Aquino. Por que eu deveria perder meu tempo com um padre dominicano
que viveu no longínquo século XIII?
Para responder,
não recorro à Wikipédia, mas às lembranças que guardo das poucas leituras que
fiz, há três décadas no mínimo. O que ficou, para mim, do Aquinate?
A limpidez do raciocínio,
sem dúvida. Limpidez que chegou a produzir vertigens no jovem viciado no estudo
de marxistas e estruturalistas. Tive de readequar minha mente ao que, percebi
com dificuldade, é a argumentação racional per
se, isto é, o verdadeiro método para apreender a realidade, analisá-la,
estabelecer distinções e elaborar respostas às perguntas fundamentais que se
colocam quando me interrogo sobre o sentido da vida.
Essa sincera
busca da verdade, uma sinceridade que se contrapõe ao mundo ideológico, incansável
em seu trabalho de tentar nos convencer de que certos temas, quase sempre de
ordem metafísica, são cartas definitivamente fora do baralho, foi o que me conquistou.
Lembro-me de uma
pequena história contada por meu professor de Filosofia: Tomás de Aquino rezava
na capela quando vê um amigo morto, que teria sido autorizado a visitá-lo
apenas para se despedir. O anseio do Doutor Angélico pela verdade é tão grande,
que ele não se interessa pela emoção da despedida, mas começa a interrogar seu
amigo sobre as características da visão beatífica que ele, provavelmente, já
alcançara.
Verdade ou não,
a história revela um pouco desse homem que, livre e maduro o suficiente para interrogar
um morto com naturalidade, ergueu um monumento filosófico cujo objetivo é conciliar
fé e razão, imergindo os princípios aristotélicos no inesgotável oceano do
cristianismo.
Um homem desse tipo, que
dedicou sua vida à tarefa mais honrosa e também mais ingrata – a de buscar a
verdade –, abdicando de toda vaidade, de todo orgulho, merece de nós pelo menos
algumas horas de leitura.
janeiro 24, 2014
janeiro 19, 2014
A crítica irônica de Augusto Monterroso ao relativismo cognitivo
Quando a
realidade se transforma, nas mãos de certo estudioso cínico, num mero texto que
pode ser desconstruído, quando querem nos fazer acreditar que a realidade
objetiva deve ser continuamente colocada sob suspeita e apenas decodificada ao
sabor dos nossos interesses ou intenções pessoais, temos certeza de que
penetramos no centro da desonestidade intelectual.
É o que Augusto Monterroso – escritor hondurenho de nascimento, mas que adotou a Guatemala como pátria – denuncia, com seu sarcasmo peculiar, na breve narrativa a seguir. Divirtam-se.
O Coelho e o Leão
Um célebre Psicanalista encontrou-se certo dia no meio da selva, semiperdido.
Com a força que dão o instinto e o desejo de investigação, conseguiu facilmente subir numa árvore altíssima, da qual pôde observar à vontade não apenas o lento pôr do sol mas também a vida e os costumes de alguns animais, que comparou algumas vezes com os dos humanos.
Ao cair da tarde viu aparecer, por um lado, o Coelho; por outro, o Leão.
A princípio não aconteceu nada digno de mencionar, mas pouco depois ambos os animais sentiram as respectivas presenças e, quando toparam um com o outro, cada qual reagiu como desde que o homem é homem.
O Leão estremeceu a selva com seus rugidos, sacudiu majestosamente a juba como era seu costume e feriu o ar com suas garras enormes; por seu lado, o Coelho respirou com mais rapidez, olhou um instante nos olhos do Leão, deu meia-volta e se afastou correndo.
De volta à cidade, o célebre Psicanalista publicou cum laude seu famoso tratado em que demonstra que o Leão é o animal mais infantil e covarde da Selva, e o Coelho, o mais valente e maduro: o Leão ruge e faz gestos e ameaça o universo movido pelo medo; o Coelho percebe isso, conhece sua própria força, e se retira antes de perder a paciência e acabar com aquele ser extravagante e fora de si, a quem ele compreende e que afinal não lhe fez nada.
É o que Augusto Monterroso – escritor hondurenho de nascimento, mas que adotou a Guatemala como pátria – denuncia, com seu sarcasmo peculiar, na breve narrativa a seguir. Divirtam-se.
O Coelho e o Leão
Um célebre Psicanalista encontrou-se certo dia no meio da selva, semiperdido.
Com a força que dão o instinto e o desejo de investigação, conseguiu facilmente subir numa árvore altíssima, da qual pôde observar à vontade não apenas o lento pôr do sol mas também a vida e os costumes de alguns animais, que comparou algumas vezes com os dos humanos.
Ao cair da tarde viu aparecer, por um lado, o Coelho; por outro, o Leão.
A princípio não aconteceu nada digno de mencionar, mas pouco depois ambos os animais sentiram as respectivas presenças e, quando toparam um com o outro, cada qual reagiu como desde que o homem é homem.
O Leão estremeceu a selva com seus rugidos, sacudiu majestosamente a juba como era seu costume e feriu o ar com suas garras enormes; por seu lado, o Coelho respirou com mais rapidez, olhou um instante nos olhos do Leão, deu meia-volta e se afastou correndo.
De volta à cidade, o célebre Psicanalista publicou cum laude seu famoso tratado em que demonstra que o Leão é o animal mais infantil e covarde da Selva, e o Coelho, o mais valente e maduro: o Leão ruge e faz gestos e ameaça o universo movido pelo medo; o Coelho percebe isso, conhece sua própria força, e se retira antes de perder a paciência e acabar com aquele ser extravagante e fora de si, a quem ele compreende e que afinal não lhe fez nada.
janeiro 14, 2014
A única sabedoria a que podemos aspirar — T. S. Eliot
A parte final da
entrevista de T. S. Eliot a Donald Hall, publicada na Paris Review (1959), é uma rara manifestação de humildade.
Hall relembra a Eliot o que este dissera dezessete anos antes: “Nenhum poeta honesto jamais poderá ter certeza absoluta do valor permanente daquilo que escreveu. Ele pode ter desperdiçado seu tempo e complicado sua vida por nada”. E pergunta: “Sente a mesma coisa agora, aos setenta anos?”. Eliot responde: “Pode ser que haja poetas honestos que tenham certeza. Eu não tenho”.
Famoso graças ao Prêmio Nobel (1948), Eliot mantinha o mesmo pensamento que deixara gravado no longo poema “East Coker”, a segunda parte de Four Quartets, publicada em 1940:
The only wisdom we can hope to acquire
Is the wisdom of humility: humility is endless.
A única sabedoria a que podemos aspirar
É a sabedoria da humildade: a humildade é infinita.
Hall relembra a Eliot o que este dissera dezessete anos antes: “Nenhum poeta honesto jamais poderá ter certeza absoluta do valor permanente daquilo que escreveu. Ele pode ter desperdiçado seu tempo e complicado sua vida por nada”. E pergunta: “Sente a mesma coisa agora, aos setenta anos?”. Eliot responde: “Pode ser que haja poetas honestos que tenham certeza. Eu não tenho”.
Famoso graças ao Prêmio Nobel (1948), Eliot mantinha o mesmo pensamento que deixara gravado no longo poema “East Coker”, a segunda parte de Four Quartets, publicada em 1940:
The only wisdom we can hope to acquire
Is the wisdom of humility: humility is endless.
A única sabedoria a que podemos aspirar
É a sabedoria da humildade: a humildade é infinita.
janeiro 08, 2014
“Nada pode destruir o bom escritor” — William Faulkner
Trechos
antológicos da entrevista que Faulkner concedeu a Jean Stein Vanden Heuvel, da Paris Review, em 1956:
Como se tornar um bom romancista
Noventa e nove por cento de talento... noventa e nove por cento de disciplina... noventa e nove por cento de trabalho. Não se deve estar nunca satisfeito com o que se faz. Nunca está tão bom quanto seria possível. Sempre sonhe e mire acima daquilo que você sabe que pode fazer. Não se preocupe apenas em ser melhor que os seus contemporâneos ou predecessores. Tente ser melhor que você mesmo.
A experiência do fracasso
Todos nós fracassamos em realizar nosso sonho de perfeição. De modo que estimo a nós todos com base no nosso esplêndido fracasso em realizar o impossível. Na minha opinião, se eu pudesse escrever toda a minha obra de novo, tenho certeza de que faria melhor, o que é a condição mais saudável para um artista. É por isso que ele continua trabalhando, tentando, tentando de novo; ele acredita que dessa vez irá conseguir, irá realizar o que quer. É claro que não conseguirá, é por isso que essa condição é saudável.
Sucesso, adversidade e pobreza
O escritor não precisa de liberdade econômica. Tudo de que precisa é lápis e papel. Eu nunca soube que algo bom em literatura tivesse se originado da aceitação de uma oferta gratuita de dinheiro. O bom escritor nunca pede auxílio a uma instituição cultural. Está ocupado demais escrevendo alguma coisa. Se não é um escritor de primeira classe, ilude-se dizendo que não tem tempo ou liberdade econômica. [...] As pessoas na verdade têm medo de descobrir que podem suportar muita adversidade e pobreza. Têm medo de descobrir que são mais resistentes do que pensam. Nada pode destruir o bom escritor. A única coisa que pode alterar o bom escritor é a morte. Os bons não têm tempo para pensar no sucesso ou em ganhar dinheiro.
Como se tornar um bom romancista
Noventa e nove por cento de talento... noventa e nove por cento de disciplina... noventa e nove por cento de trabalho. Não se deve estar nunca satisfeito com o que se faz. Nunca está tão bom quanto seria possível. Sempre sonhe e mire acima daquilo que você sabe que pode fazer. Não se preocupe apenas em ser melhor que os seus contemporâneos ou predecessores. Tente ser melhor que você mesmo.
A experiência do fracasso
Todos nós fracassamos em realizar nosso sonho de perfeição. De modo que estimo a nós todos com base no nosso esplêndido fracasso em realizar o impossível. Na minha opinião, se eu pudesse escrever toda a minha obra de novo, tenho certeza de que faria melhor, o que é a condição mais saudável para um artista. É por isso que ele continua trabalhando, tentando, tentando de novo; ele acredita que dessa vez irá conseguir, irá realizar o que quer. É claro que não conseguirá, é por isso que essa condição é saudável.
Sucesso, adversidade e pobreza
O escritor não precisa de liberdade econômica. Tudo de que precisa é lápis e papel. Eu nunca soube que algo bom em literatura tivesse se originado da aceitação de uma oferta gratuita de dinheiro. O bom escritor nunca pede auxílio a uma instituição cultural. Está ocupado demais escrevendo alguma coisa. Se não é um escritor de primeira classe, ilude-se dizendo que não tem tempo ou liberdade econômica. [...] As pessoas na verdade têm medo de descobrir que podem suportar muita adversidade e pobreza. Têm medo de descobrir que são mais resistentes do que pensam. Nada pode destruir o bom escritor. A única coisa que pode alterar o bom escritor é a morte. Os bons não têm tempo para pensar no sucesso ou em ganhar dinheiro.
janeiro 07, 2014
“Em tudo o que é linguagem humana sorri a morte” — Hermann Broch
“A metáfora
ainda não é o conhecimento, não, segue ao conhecimento, porém às vezes o
precede, como um pressentimento ilícito, imperfeito, que somente é utilizado
pelas palavras, e então, ao invés de adentrar-se no conhecimento, se plantará à
frente dele, encobrindo-o, qual biombo escuro.
[...]
Somente por metáforas pode-se captar a vida, só por metáforas se pode expressar a metáfora; a cadeia das metáforas não tem fim, e unicamente a morte carece delas, a morte rumo à qual se estende essa cadeia, como ao seu último elo, que, no entanto, já se achasse fora dela,... como se todas aquelas metáforas estivessem formadas exclusivamente em prol da morte, a fim de apanharem, apesar de tudo, a sua ausência de metáforas, sim, como se só por meio dela a língua pudesse reobter sua simplicidade original, como se a morte fosse o lugar de nascimento da linguagem terrenamente singela, do símbolo mais terreno e todavia mais divino: em tudo o que é linguagem humana sorri a morte.”
— Hermann Broch em A Morte de Virgílio, obra que estudamos na 8ª aula do curso “Prática de Leitura e Formação do Estilo”.
[...]
Somente por metáforas pode-se captar a vida, só por metáforas se pode expressar a metáfora; a cadeia das metáforas não tem fim, e unicamente a morte carece delas, a morte rumo à qual se estende essa cadeia, como ao seu último elo, que, no entanto, já se achasse fora dela,... como se todas aquelas metáforas estivessem formadas exclusivamente em prol da morte, a fim de apanharem, apesar de tudo, a sua ausência de metáforas, sim, como se só por meio dela a língua pudesse reobter sua simplicidade original, como se a morte fosse o lugar de nascimento da linguagem terrenamente singela, do símbolo mais terreno e todavia mais divino: em tudo o que é linguagem humana sorri a morte.”
— Hermann Broch em A Morte de Virgílio, obra que estudamos na 8ª aula do curso “Prática de Leitura e Formação do Estilo”.