agosto 08, 2013

“Só há uma escola: a do talento” – Vladimir Nabokov


Gosto de reler as entrevistas da Paris Review. Algumas delas revelam pormenores que ajudam a compreender o caminho escolhido pelos escritores, sua visão da realidade, do seu tempo – ou, no mínimo, permitem conhecer a personagem na qual o escritor se transforma ao se manifestar publicamente.
 
A entrevista que Vladimir Nabokov concedeu a Herbert Gold, em 1967, é um exemplo de savoir-vivre, sarcasmo e inteligência. As respostas que escolhi para este post contribuem para provar por que Nabokov pertence, sem nenhuma dúvida, à “escola do talento”:
 
Personagens são escravos

Pergunta: E. M. Forster fala que suas personagens principais às vezes ganham vida própria e ditam o curso de seus romances. Isso alguma vez constituiu um problema para o senhor, ou tem pleno domínio sobre as personagens?

Nabokov: O meu conhecimento das obras de E. M. Forster limita-se a um romance, do qual não gosto. De qualquer forma, não foi ele quem deu início a essa fantasia banal a respeito de personagens que fogem ao controle; isso é mais velho do que o mundo. Se bem que, naturalmente, daria para se sentir solidário com as personagens dele, caso tentassem escapar daquela viagem para a Índia, ou onde quer que ele os estivesse levando. Os meus personagens são verdadeiros escravos.

Imitações sem vida

Pergunta: E existe algum [autor] que o senhor acompanhe a duras penas?

Nabokov: Não. Muitos autores reconhecidos simplesmente não existem para mim. São nomes gravados em túmulos vazios, seus livros são imitações sem vida, são perfeitas nulidades no que diz respeito ao meu gosto para leitura. Brecht, Faulkner, Camus e muitos outros não significam absolutamente nada para mim, e tenho que me esforçar muito para não acreditar na existência de uma conspiração contra a minha inteligência quando vejo que são aceitos calmamente como “literatura maior”, seja por críticos como que por companheiros de ofício. As copulações de Lady Chatterley ou as bobagens pretensiosas de Ezra Pound, uma tapeação só. Reparei que, em algumas casas, ele substituiu o Sr. Schweitzer nas estantes.

Fácil, fácil demais

Pergunta: Como admirador de Borges e Joyce, o senhor também parece compartilhar o prazer que eles têm em provocar o leitor com truques, trocadilhos e enigmas. Como acha que deve ser a relação entre leitor e autor?

Nabokov: Não me recordo de nenhum trocadilho em Borges, mas só li traduções de seus livros. De qualquer forma, seus pequenos contos delicados e seus minotauros em miniatura não têm nada em comum com os engenhos enormes de Joyce. Também não encontro muitos enigmas no mais lúcido dos romances, Ulysses. Por outro lado, eu detesto Punnegans wake, [*] onde um tumor maligno formado pelo tecido de palavras fantasiosas mal chega a recuperar a lamentável jovialidade do folclore e a alegoria fácil, fácil até demais.

Pergunta: O que aprendeu com Joyce?

Nabokov: Nada.

Pergunta: Ora, convenhamos...

Nabokov: James Joyce não me influenciou de forma alguma. Meu primeiro e breve contato com Ulysses foi por volta de 1920 na Universidade de Cambridge, quando um amigo, Peter Mrozovski, que trouxera um exemplar de Paris, leu para mim, enquanto caminhava para cima e para baixo em meus aposentos, uma ou duas passagens picantes do monólogo de Molly, que, cá entre nós, é o capítulo mais fraco do livro. Só quinze anos mais tarde, quando já estava bem formado como escritor, e relutava em aprender ou desaprender qualquer coisa, li Ulysses, e gostei imensamente. Já em relação a Finnegans wake, eu sou indiferente, como o sou a toda literatura regional escrita em dialeto — mesmo que seja o dialeto de um gênio.

[*] “Pun”, em inglês, significa trocadilho, jogo lingüístico, recurso extremamente usado em Finnegans wake.

Uma coisa dura, artificial

Pergunta: Como escritor, o senhor sente ter alguma falha secreta ou evidente?

Nabokov: A falta de um vocabulário natural. Uma coisa estranha para se confessar, mas é verdade. Dos dois instrumentos de que disponho, um — minha língua nativa —, eu não posso mais usar, não só por falta de um público russo, mas também porque o entusiasmo pela aventura da palavra em russo foi morrendo pouco a pouco, depois que me voltei para o inglês em 1940. O meu inglês, o segundo instrumento, que sempre tive, é, no entanto, uma coisa dura, artificial, que pode ser boa, talvez, para descrever um pôr-do-sol ou um inseto, mas que não consegue esconder a pobreza da sintaxe e a escassez de um linguajar doméstico quando preciso do atalho entre o armazém e a loja. E nem sempre se prefere um antigo Rolls-Royce a um jipe comum.

Tudo muito divertido

Pergunta: Qual a sua opinião sobre o posicionamento competitivo dos escritores contemporâneos?

Nabokov: É, eu já notei que, com relação a isso, nossos críticos profissionais são verdadeiros bookmakers. Quem está no páreo, quem não está, e para onde foram as neves de antanho? [*] Tudo muito divertido. Fico um pouco sentido por ser deixado de fora. Não conseguem decidir se sou um escritor americano de meia-idade ou um velho escritor russo — ou uma anomalia internacional que não tem idade.

[*] Refere-se a François Villon: “Mais où sont les neiges d’antan?”, refrão de “Ballade (des dames du temps jadis)”.

Só há uma escola

Pergunta: Como o senhor considera hoje em dia poetas como Blok, Mandelshtam e outros que escreviam antes de o senhor deixar a Rússia?

Nabokov: Li esses poetas quando era garoto, há mais de meio século. Desde então me tomei um apreciador incondicional da lírica de Blok. Seus poemas mais longos são fracos, e o famoso “Os doze” é pavoroso, conscientemente concebido em um falso tom “primitivista”, com um Jesus Cristo em cartolina cor-de-rosa colado no final. Quanto a Mandelshtam, também o sabia de cor, mas ele me oferecia um prazer menos apaixonado. Hoje, pela ótica de um destino trágico, sua poesia parece maior do que realmente é. Noto, por sinal, que muitos professores de literatura ainda colocam esses dois poetas em escolas diferentes. Só há uma escola: a do talento.

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