maio 15, 2013

Contradições e a arte de escrever em Theodor Adorno


Em alguns dos fragmentos que compõem Minima Moralia, Theodor Adorno fala sobre a escrita. No seu estilo muitas vezes seco, sempre a um passo de se tornar hermético, ele parece acreditar no que expõe: “Faz parte da técnica de escrever ser capaz de renunciar até mesmo a pensamentos fecundos, se a construção o exigir. Sua plenitude e sua força beneficiam-se precisamente dos pensamentos reprimidos. Como à mesa, não se deve comer até os últimos bocados, nem beber até o fim. Do contrário, nós nos tornamos suspeitos de pobreza”.

É o Adorno burguês quem fala nesse trecho do fragmento 51 – burguês no sentido flaubertiano do termo, aquele que realmente acredita ter abertura de espírito, mas só consegue destilar preconceito. Na verdade, exagera apenas para justificar seu próprio estilo, como, aliás, já fizera pouco antes, quando argumenta que o escritor deve “verificar em cada texto, cada fragmento, cada parágrafo, se o tema central sobressai com nitidez”.

Ora, angústias desse tipo servem à criação de textos fracionários. Há uma divagação – ou, melhor, uma circum-navegação – que não é de todo ruim: recorrer, por exemplo, a outras referências, que aparentemente se distanciam do tema central, apenas para iluminá-lo melhor.

Todo texto exige, em alguma medida, certa retórica. O próprio Adorno não pôde evitá-la. Nesse mesmo fragmento, gasta cinco linhas para compor uma bela metáfora, cuja função é, inclusive, demonstrar que ele sabe escrever direito: “Os textos bem elaborados são como teias de aranha: densos, concêntricos, transparentes, bem estruturados e sólidos. Eles atraem para dentro tudo o que voa e rasteja. As metáforas que os atravessam apressadas e descuidadas, tornam-se para eles presas nutritivas. Os materiais afluem facilmente para eles”.

As duas frases finais não seriam desnecessárias? Elas repetem, com outras palavras, o que está sintetizado nas duas iniciais – mas Adorno não teme usá-las; e, vaidoso, “come até o último bocado, bebe até o fim”. Mas isso é Adorno. Como todo marxista, contraditório.

Na verdade, não se deve “renunciar aos pensamentos fecundos”. Se eles podem, de fato, conectar-se ao tema central, por que não readequar o todo, por que não reescrever e reescrever até atingir o que efetivamente pretendemos?

Mas, sejamos justos, Adorno também acerta. “Nenhuma correção é demasiado pequena ou insignificante para que não se deva realizá-la. Em cem alterações, cada uma pode aparecer isoladamente como tola e pedante; juntas podem constituir um novo nível de texto” – conselho corretíssimo. Da mesma forma que é acertada sua observação sobre os lugares-comuns, muitas vezes “associações de palavras” nas quais “murmura o fluxo indolente de uma linguagem insípida”.

Entretanto, é pena que – ele chega a citar Karl Kraus – sua análise do clichê seja superficial. Mas não poderia ser de outro modo. Adorno não tem como evitar a vagueza, não pode retomar as críticas severas que Kraus fazia à linguagem submetida à ideologia, pois isso significaria ter de atacá-las, a fim de defender o marxismo...

Aliás, é o militante esquerdista quem afirma, no mesmo fragmento: “O sonho de uma existência sem ignomínia, ao qual a paixão pela linguagem se apega quando já não se pode mais representá-lo enquanto conteúdo, deve ser estrangulado com pérfida alegria”. Aí está o pensamento revolucionário, em permanente luta com a realidade, sempre pronto a substituí-la por seus próprios sonhos. O marxista precisa acreditar que a existência só é possível com ignomínia – e deve recusar a linguagem que pretenda reafirmar a dignidade e a glória da vida. Se não o fizer, como justificará a absoluta necessidade da utopia? Se não o fizer, não poderá justificar o que mais defende: que todos os meios são aceitáveis para construir o Paraíso aqui e agora.

Para Adorno, “o escritor não pode aceitar a distinção entre a expressão bela e a expressão adequada ao assunto. [...] Se consegue dizer inteiramente o que pretende dizer, então é belo o que diz”. Mas, logo depois, o militante tenta derrotar o esteticista: “Quem todavia, sob o pretexto de servir com abnegação a uma causa, negligencia a pureza de expressão, está por isso mesmo traindo a própria causa”. O contraditório marxista não sabe o que fazer: primeiro, a beleza é uma categoria que só pode ser medida pela vontade do próprio escritor; depois, há uma “pureza de expressão”, mas que não é definida.

Podemos aproveitar, contudo, os trechos felizes, como este: “O envolvimento afetivo com o texto e a vaidade tendem a diminuir a escrupulosidade. O que se deixa passar apenas como uma dúvida insignificante pode tornar manifesta a falta de valor objetivo do todo”. Quase sempre esquecidas, as duas frases deveriam permanecer à vista de todos os que são ou almejam ser escritores: render-se à vaidade é perder o rigor.

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