A tarefa do escritor é permitir que realidade e ficção se interpenetrem |
O escritor sempre
parte da sua experiência; sempre fala, em alguma medida, de si mesmo.
Ele transforma
realidade em ficção — e usa, como filtro, o seu olhar.
Na verdade, os
próprios escritores realistas — com sua pretensão de esquadrinhar sem lirismo o
real, de forma objetiva, sem utilizar simbolismos — repetiram o que a ficção
faz há séculos: filtraram a vida utilizando uma simbólica pessoal, uma forma
particular de entender a realidade.
Há, claro,
diferentes gradações na maneira como os escritores utilizam a realidade e suas
próprias experiências. Mas literatura e realidade estão inextricavelmente
ligadas.
Aos leitores,
contudo, não importa o quanto a história é baseada em fatos reais ou
autobiográficos.
Pode ser curioso
saber que certa personagem medíocre é loira e gosta de usar camisolas verdes
porque a mãe do autor, que ele considerava fútil e mesquinha, era loira e tinha
um guarda-roupa repleto de vestidos verdes...
Mas preocupar-se
com essas filigranas quase sempre não passa de bizantinismo. Tais informações
serão úteis, no futuro, se o escritor merecer a honra — ou a desonra — de ser
biografado.
O que interessa —
para o leitor e para o crítico — é a história em si.
O que importa é se
a história está bem contada; se personagens, cenários, diálogos e voz narrativa
criam a verossimilhança capaz de convencer, arrebatar.
Leitores e
críticos buscam histórias que derrotem as visões estereotipadas da vida, que
desprezem os lugares-comuns, que observem e reconstruam a realidade sob um novo
olhar, sob uma perspectiva nunca antes utilizada.
Só esse enfoque
pessoal e incomparável pode transformar um fato aparentemente banal numa
história aliciante, digna de ser lida e relida por gerações.
Não, não se trata
de fazer a cópia exata da realidade — o que, aliás, é impossível —, mas de transformá-la
até o que podemos chamar de “ponto ideal”, um grau de otimização que não pode
ser fixado, pois depende de cada história, de cada escritor, de cada voz
narrativa.
Em que medida uma
história é autobiográfica ou não, isso, repito, interessa aos biógrafos — e a
certas vazias discussões acadêmicas.
Você certamente já
ouviu falar em autoficção. Um termo
moderno, pretensamente iluminador. Na verdade, uma expressão que, quando não
confunde, afirma o óbvio.
Em teoria
literária, com o advento do estruturalismo, os teóricos se especializaram em
criar um jargão hermético e vazio.
Ler alguns desses
estudiosos é como ouvir uma pitonisa: crédulos escutam boquiabertos e,
sugestionáveis, têm a impressão de que, sob a fala incompreensível, a verdade
lateja semelhante a um mistério milenar, pronto a ser esclarecido.
Basta, entretanto,
ter uma dose mínima de desconfiança para refletir e chegar à conclusão de que tudo
se resume a verniz intelectualista.
É o que acontece
com o termo autoficção.
Sabe por quê?
Porque toda a literatura é, no fundo, autoficção.
Mas os teóricos
modernos acreditam que, para entender um fato, para esclarecer uma tendência,
basta criar um termo específico ou uma nova terminologia.
Por isso falam em autoficção: para justificar, com um nome
curioso, a pobreza de parte da literatura contemporânea, cujos autores preferem, como dizia Alcântara Machado, se
flagelar, “desnudando os seqüestros e complexos numa expiação pública para ser
bem expiatória”.
Com o ar superior
de quem reinventou a roda, alguns teóricos olham para essa literatura pequena —
em que o autor parece repetir “eu, eu, eu, eu, eu...” — e dizem: “Ah, isto é autoficção. É um novo gênero literário.
Que coisa linda”.
Eles esquecem que,
em literatura, tudo é, de alguma forma, autobiográfico.
Todos fabulam
nesta vida. E o escritor ainda mais, pois é a sua profissão. Sua tarefa é
mesclar realidade e fantasia — permitir que realidade e imaginação se
interpenetrem, se contaminem.
Muito bom o artigo, parabéns, Rodrigo! Ando cansada dessas perguntas: seu livro é autobiográfico ou não? Isso é verdade ou não é? Nunca entendo de que "verdade" estão falando. Em literatura, nem sempre "verdade" é verdade, ou pode ser, quem sabe... O que é verdade? O que interessa é a qualidade, sempre. Não sei preencher comentário, por isso assino aqui mesmo: Rosângela Vieira Rocha
ResponderExcluir