dezembro 23, 2014

A glamourização da barbárie

"Os professores de hoje pressupõem que a criança dos bairros pobres está plena e culturalmente guarnecida do necessário"
Há vários meses assisti, no YouTube, à gravação de um evento numa das favelas pacificadas do Rio de Janeiro. Diante do público formado por jovens, alguns escritores — parte deles desconhecida para mim — falavam sobre suas experiências com a criação literária e davam conselhos.

No local abarrotado de jovens, um dos iluminados palestrantes insistia no fato de que eles não deveriam se preocupar com o que existia fora da favela, que aquele era um mundo que já lhes oferecia inúmeras possibilidades de criação, de desenvolvimento da sua arte.

Todo o discurso estava construído sobre uma retórica exageradamente otimista e falsa: a de que a favela, agora “pacificada”, era o melhor dos mundos.

O palestrante era uma espécie de reencarnação carioca do Dr. Pangloss.

Enquanto assistia ao vídeo, lembrei-me de Machado de Assis — e do que teria sido dele, da sua inteligência, da sua sensibilidade, se não tivesse lutado para abandonar o Morro do Livramento, se não tivesse recebido a ajuda de Francisco de Paula Brito e, trabalhando como aprendiz de tipógrafo na Imprensa Nacional, as orientações severas e amigas de Manuel Antônio de Almeida.

O palestrante, certamente, não se lembrou de Machado. E também não leu a obra do psiquiatra a escritor Anthony Daniels, que assina seus livros com o pseudônimo de Theodore Dalrymple.

Num dos capítulos de A vida na sarjeta — O Círculo Vicioso da Miséria Moral, publicado no Brasil pela É Realizações, Dalrymple fala sobre a “terrível fatalidade que pode recair sobre um ser humano: nascer inteligente e com sensibilidade em um bairro pobre inglês”.

Segundo Dalrymple, “é como uma tortura requintada, longa e vagarosa, imaginada por uma divindade sádica de cujas maldosas garras é quase impossível fugir”.

Vivendo nessas comunidades e atendendo, como médico, os moradores locais, Dalrymple constatou o que assisti no vídeo do YouTube — e o que estamos cansados de ver nas escolas contemporâneas: “Os professores de hoje, impregnados da idéia de que é errado ordenar hierarquicamente civilizações, culturas ou modos de vida, negam o valor de uma civilização superior e são incapazes de transmiti-lo. Para eles não há altura ou profundeza, superioridade ou inferioridade, profundidade ou superficialidade: há somente diferença. Duvidam até mesmo de que exista um modo correto e um modo errado de grafar uma palavra ou construir uma frase”.

E, acreditem, encontrei no texto de Dalrymple a cópia fidedigna do que me indignou no vídeo: “Os professores de hoje”, diz nosso autor, “pressupõem que a criança dos bairros pobres está plena e culturalmente guarnecida do necessário no ambiente em que vive. Seu discurso é, por definição, adequado às necessidades; seus gostos são, por definição, aceitáveis e não piores ou mais baixos que quaisquer outros. Não há motivos, portanto, para introduzi-las a nada”.

O cinismo desses professores e intelectuais é insuperável. Muitos repetem esse discurso sem se importar com o fato de que estudaram em grandes universidades, ganharam bolsas no exterior e hoje vivem refestelados em bairros de classe média, usufruindo das oportunidades, do acesso à alta cultura, comunicando-se numa linguagem perfeita, culta — mas argumentando, como bons demagogos, como bons populistas, em favor da glamourização da favela.

Esses intelectuais não mostram como “a cultura de periferia é monolítica e profundamente intolerante” — e certamente basta, ao leitor atento, o termo “pacificada”, no qual encontra-se escondida a verdadeira guerra civil que esses bairros enfrentam.

Não entendo como podemos mentir de forma tão descarada para nossos jovens.

Dalrymple narra, em A vida na sarjeta, casos concretos de jovens inteligentes e sensíveis que foram destruídos pela cultura local, destituída de “fé na hierarquia de valores”.

É exatamente o que a reencarnação carioca do Dr. Pangloss defendia no vídeo: uma cultura na qual “o conhecimento não é preferível à ignorância”, uma cultura em que “os inteligentes e os que têm sensibilidade sofrem a perda total do significado das coisas”.

Leiam Dalrymple, assistam a esses programas transmitidos pelo canal GNT ou pela Globo, em que a favela é glamourizada, enaltecida como o melhor dos mundos — e depois me respondam o que teria sido da literatura brasileira se o mulato pobre Machado de Assis não tivesse lutado para abandonar o morro.

3 comentários:

  1. Olá Professor Rodrigo! Creio que sua reflexão é muito pertinente e coincide com minha experiência, pois morei toda a minha vida numa favela e também viajei um bocado pelo mundo, morando fora do Brasil por alguns anos, absorvendo influências de todo tipo.
    Contudo, penso que existe um ângulo sugestivo e rico sob o qual contemplar a experiência da favela. Naquela memorável reunião que vocês fizeram na casa de Olavo de Carvalho na Virgínia - EUA (que considero um verdadeiro "Manifesto Humanista") Olavo fez uma bela interpretação do filme Central do Brasil, chamando a atenção sobre a volta às origens rurais que se dá no fim do filme, a volta aos valores essenciais que o sertão cristão ainda conserva. Ali naquele aconchego comunitário maior, gerado pela semente da Tradição Cristã, o drama do menino recentemente órfão de mãe, encontra sua resolução. Creio que este sugestivo ângulo sob o qual Olavo analisou o desfecho de Central do Brasil pode ser igualmente rico e fecundo para adentrar a realidade favelada na medida em que essa é fruto do êxodo rural e, portanto, traz da tradição rural, valores humanos e cristãos que por vezes o mundo urbano e secularizado sufocou. Essa foi exatamente a minha experiência pessoal como favelado, foi ali na favela, que tive meu primeiro contato com a grande tradição da fé cristã, conservada na piedade popular, na devoção à Virgem Maria, no costume de pedir a benção aos pais, que meus colegas de outros bairros não tinham etc. E partindo dessa experiência básica é que pude filtrar e absorver todas as outras contribuições que de fora da favela, chegaram a mim.
    E é claro, por este mesmo ângulo, pode ser avaliado e justamente criticado esse triste panorama que você (com pertinência) aponta: a pasteurização monótona de toda a vida "cultural" que a Regina Casé costuma glamourizar em seu programa global. Para mim, essa pobreza cultural, festejada pela tv e por "intelectuais" do perfil citado por seu post é exatamente reflexo da gradual perda da alma historicamente mais original e genuína da favela que é, em última análise, uma alma rural fecundada pela tradição cristã.
    O samba de Erivelto Martins "Ave Maria do Morro", ao dizer que "o morro inteiro no fim do dia, reza uma prece: Ave Maria", a meu ver, lembra essa alma genuína da favela, que se perde a cada dia, dando lugar à pobreza cultural pasteurizada que você cita. Se alguém quer lembrar ao povo favelado, sua riqueza própria e genuína, para mim este alguém tem que se referir à esse substrato mais autêntico, remeter à essa origem histórica rural, para trazer à vista os alicerces mais profundos, em vez de exaltar como sendo autenticidade cultural, aquilo que é justamente decadência e desenraizamento cultural.

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  2. (estou re-postando o comentário, pois havia colocado umas aspas onde não devia)

    Olá Professor Rodrigo! Creio que sua reflexão é muito pertinente e coincide com minha experiência, pois morei toda a minha vida numa favela e também viajei um bocado pelo mundo, morando fora do Brasil por alguns anos, absorvendo influências de todo tipo.
    Contudo, penso que existe um ângulo sugestivo e rico sob o qual contemplar a experiência da favela. Naquela memorável reunião que vocês fizeram na casa de Olavo de Carvalho na Virgínia - EUA (que considero um verdadeiro "Manifesto Humanista") Olavo fez uma bela interpretação do filme Central do Brasil, chamando a atenção sobre a volta às origens rurais que se dá no fim do filme, a volta aos valores essenciais que o sertão cristão ainda conserva. Ali naquele aconchego comunitário maior, gerado pela semente da Tradição Cristã, o drama do menino recentemente órfão de mãe, encontra sua resolução. Creio que este sugestivo ângulo sob o qual Olavo analisou o desfecho de Central do Brasil pode ser igualmente rico e fecundo para adentrar a realidade favelada na medida em que essa é fruto do êxodo rural e, portanto, traz da tradição rural, valores humanos e cristãos que por vezes o mundo urbano e secularizado sufocou. Essa foi exatamente a minha experiência pessoal como favelado, foi ali na favela, que tive meu primeiro contato com a grande tradição da fé cristã, conservada na piedade popular, na devoção à Virgem Maria, no costume de pedir a benção aos pais, que meus colegas de outros bairros não tinham etc. E partindo dessa experiência básica é que pude filtrar e absorver todas as outras contribuições que de fora da favela, chegaram a mim.
    E é claro, por este mesmo ângulo, pode ser avaliado e justamente criticado esse triste panorama que você (com pertinência) aponta: a pasteurização monótona de toda a vida "cultural" que a Regina Casé costuma glamourizar em seu programa global. Para mim, essa pobreza cultural, festejada pela tv e por "intelectuais" do perfil citado por seu post é exatamente reflexo da gradual perda da alma historicamente mais original e genuína da favela que é, em última análise, uma alma rural fecundada pela tradição cristã.
    O samba de Erivelto Martins "Ave Maria do Morro", ao dizer que "o morro inteiro no fim do dia, reza uma prece: Ave Maria", a meu ver, lembra essa alma genuína da favela, que se perde a cada dia, dando lugar à pobreza cultural pasteurizada que você cita. Se alguém quer lembrar ao povo favelado, sua riqueza própria e genuína, para mim este alguém tem que se referir a esse substrato mais autêntico, remeter a essa origem histórica rural, para trazer à vista os alicerces mais profundos, em vez de exaltar como sendo autenticidade cultural, aquilo que é justamente decadência e desenraizamento cultural.

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  3. Obrigado por seu comentários, Geraldo. Um forte abraço e votos de santo Natal!

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