Poucas vezes
encontrei, principalmente nos últimos dias, um julgamento tão equilibrado sobre
o autor de Cem anos de solidão. Refiro-me ao ótimo artigo de Rafael Gómez Pérez, do qual coloco um trecho a seguir — texto que vai na contramão do
endeusamento patrocinado pela esquerda e coloca Gabriel García Márquez no seu
devido lugar:
García Márquez foi um excelente contador
de histórias, oferecidas numa linguagem quase sempre muito inventiva. Mas nós
não gostamos apenas de ouvir histórias; também apreciamos encontrar um
pensamento de fundo, uma concepção de homem, um tema denso. Por isso Homero,
Dante, Cervantes, Shakespeare e Goethe são imortais... Ou, em tempos mais
modernos, Tolstói e “Guerra e Paz”, ou Dostoiévski em quase toda a sua obra,
principalmente em “Irmãos Karamazov”; ou a longa evocação de Proust, ou Thomas
Mann em “A montanha mágica”... García Márquez não está nesse grupo, no qual
poucos entraram até hoje. Ele está no grupo dos que entretêm contando algumas
histórias assombrosas, que seduzem enquanto duram, ainda que, ao final, deixem
um não sei quê de inconsistência. É o que se verá quando o mito perder a força
e García Márquez estiver no lugar que lhe corresponde.
Recomendo que leiam a íntegra desse artigo justo e lúcido, “García Márquez menos el mito”.
abril 23, 2014
abril 04, 2014
Ódio ao português – Antônio Torres e “As razões da Inconfidência”
No jornal Rascunho deste mês, escrevo sobre
Antônio Torres, esquecido autor mineiro, cronista ferino e ácido que fez enorme
sucesso entre as décadas de 1910 a 1930.
Na contramão da
eloquência nacional, Torres repete nos textos o rigor que pautava sua conduta,
sempre ética. Em Da correspondência de
João Epíscopo (1917), não basta mostrar a teimosia com que Antônio
Austregésilo Rodrigues de Lima, neurologista escolhido para a Academia Brasileira
de Letras em 1914, abusa do chavão “de oradores de comícios, chapa retórica
inteiramente gasta”, mas é preciso tripudiar, de forma didática, sobre o
“venturoso clínico”:
[...] A sua frase vai, volta, sobe,
desce, anda, desanda, empaca, corre um centímetro, enguiça logo depois, resvala
para a direita, escorrega para a esquerda, range nas engrenagens, emperra,
torna a mover-se, embaraça-se imediatamente, faz novo e último esforço para
voar e vai engastalhar-se definitivamente no beco sem saída de um ponto final.
Aí o motor de V. Exa. dá uma descarga; o aparelho começa então a funcionar,
trepidando; a frase volta ao ponto de partida; tenta tomar nova direção; anda
um instante, vibra e paf! novo empacamento! V. Exa. força a manícula; abre a
caixa de gases; a frase sai zimbrando (como diria o Sr. Coelho Neto), às
curvetas e ziguezagues, em linhas quebradas e sinuosas, e, cansada, arquejante,
impotente, despedaça-se no ímpeto de uma derrapagem. Trilam apitos; corre
gente, acode a polícia, grita a multidão: Não pode! Não pode! Prende! Lincha! Nisto se ouve tilintar aflitamente a campainha e é a Assistência que
chega para socorrer o leitor desfalecido!