É um processo
difícil, mas não impossível. Como afirmou Edmund Burke – faço uma tradução
livre –, “uma nação não é só uma ideia de extensão geográfica e de momentânea
acumulação de indivíduos, mas uma ideia de continuidade que se prolonga no
tempo, em números, no espaço. E não se trata da eleição de um dia ou de um
grupo de pessoas, nem de uma eleição tumultuada e inconstante. É uma deliberada
seleção de tempos e gerações; uma constituição feita pelo que é dez mil vezes
melhor que certa mera eleição; porque está formada por circunstâncias
peculiares, por ocasiões, temperamentos e disposições, por costumes morais,
civis e sociais das pessoas, que se vão revelando ao longo do tempo. É uma
vestimenta que se adapta por si só ao corpo. Não é um preceito de governo
fundamentado em prejuízos cegos e sem sentido. Porque o homem é, ao mesmo
tempo, o ser mais sábio e mais ignorante. O indivíduo pode ser idiota; a massa
é idiota também, quando age sem deliberação. Mas a espécie é sábia; e quando,
como espécie, se concede a ela o tempo necessário, quase sempre atua de maneira
adequada”.
Refletindo sobre
essas questões, sobre como nosso país, engolfado pela demagogia e pelo
populismo, agarrou-se à certeza mentirosa de que é possível construir uma
verdadeira nação apenas com discursinhos repletos de logorréia e promessas
fantasiosas, reencontrei este artigo que Olavo de Carvalho escreveu em 2003 e
que coloca a única lei que pode nos arrancar da idiotia, da manipulação
demagógica: “A língua, a religião e a alta cultura vêm primeiro, a prosperidade
depois”.
O ORGULHO DO FRACASSO
Olavo de
Carvalho
[O Globo, 27 de
dezembro de 2003]
“O world,
thou choosest not the better part!” – George Santayana
Língua, religião e alta cultura são os únicos componentes de
uma nação que podem sobreviver quando ela chega ao término da sua duração
histórica. São os valores universais, que, por servirem a toda a humanidade e
não somente ao povo em que se originaram, justificam que ele seja lembrado e
admirado por outros povos. A economia e as instituições são apenas o suporte,
local e temporário, de que a nação se utiliza para seguir vivendo enquanto gera
os símbolos nos quais sua imagem permanecerá quando ela própria já não existir.
Mas, se esses elementos podem servir à humanidade, é porque
serviram eminentemente ao povo que os criou; e lhe serviram porque não
traduziam somente suas preferências e idiossincrasias, e sim uma adaptação
feliz à ordem do real. A essa adaptação chamamos “veracidade” – um valor
supralocal e transportável por excelência. As criações de um povo podem servir
a outros povos porque elas trazem em si uma veracidade, uma compreensão da
realidade – sobretudo da realidade humana – que vale para além de toda condição
histórica e étnica determinada.
Por isso esses elementos, os mais distantes de todo
interesse econômico, são as únicas garantias do êxito no campo material e
prático. Todo povo se esforça para dominar o ambiente material. Se só alguns
alcançam o sucesso, a diferença, como demonstrou Thomas Sowell em Conquests and Cultures, reside
principalmente no “capital cultural”, na capacidade intelectual acumulada que a
mera luta pela vida não dá, que só se desenvolve na prática da língua, da
religião e da alta cultura.
Nenhum povo ascendeu ao primado econômico e político para
somente depois se dedicar a interesses superiores. O inverso é que é
verdadeiro: a afirmação das capacidades nacionais naqueles três domínios
antecede as realizações político-econômicas.
A França foi o centro cultural da Europa muito antes das
pompas de Luís XIV. Os ingleses, antes de se apoderar dos sete mares, foram os
supremos fornecedores de santos e eruditos para a Igreja. A Alemanha foi o foco
irradiador da Reforma e em seguida o centro intelectual do mundo – com Kant,
Hegel e Schelling – antes mesmo de constituir-se como nação. Os EUA tinham três
séculos de religião devota e de valiosa cultura literária e filosófica antes de
lançar-se à aventura industrial que os elevou ao cume da prosperidade. Os
escandinavos tiveram santos, filósofos e poetas antes do carvão e do aço. O
poder islâmico, então, foi de alto a baixo criatura da religião – religião que seria
inconcebível se não tivesse encontrado, como legado da tradição poética, a
língua poderosa e sutil em que se registraram os versículos do Corão. E não é
nada alheio ao destino de espanhóis e portugueses, rapidamente afastados do
centro para a periferia da História, o fato de terem alcançado o sucesso e a
riqueza da noite para o dia, sem possuir uma força de iniciativa intelectual
equiparável ao poder material conquistado.
A experiência dos milênios, no entanto, pode ser obscurecida
até tornar-se invisível e inconcebível. Basta que um povo de mentalidade
estreita seja confirmado na sua ilusão materialista por uma filosofia mesquinha
que tudo explique pelas causas econômicas. Acreditando que precisa resolver
seus problemas materiais antes de cuidar do espírito, esse povo permanecerá
espiritualmente rasteiro e nunca se tornará inteligente o bastante para
acumular o capital cultural necessário à solução daqueles problemas.
O pragmatismo grosso, a superficialidade da experiência
religiosa, o desprezo pelo conhecimento, a redução das atividades do espírito
ao mínimo necessário para a conquista do emprego (inclusive universitário), a
subordinação da inteligência aos interesses partidários, tais são as causas
estruturais e constantes do fracasso desse povo. Todas as demais explicações
alegadas – a exploração estrangeira, a composição racial da população, o
latifúndio, a índole autoritária ou rebelde dos brasileiros, os impostos ou a
sonegação deles, a corrupção e mil e um erros que as oposições imputam aos governos
presentes e estes aos governos passados – são apenas subterfúgios com que uma
intelectualidade provinciana e acanalhada foge a um confronto com a sua própria
parcela de culpa no estado de coisas e evita dizer a um povo pueril a verdade
que o tornaria adulto: que a língua, a religião e a alta cultura vêm primeiro,
a prosperidade depois.
As escolhas, dizia L. Szondi, fazem o destino. Escolhendo o
imediato e o material acima de tudo, o povo brasileiro embotou sua
inteligência, estreitou seu horizonte de consciência e condenou-se à ruína
perpétua.
O desespero e a frustração causados pela longa sucessão de derrotas na luta contra males econômicos refratários a todo tratamento chegaram, nos últimos anos, ao ponto de fusão em que a soma de estímulos negativos produz, pavlovianamente, a inversão masoquista dos reflexos: a indolência intelectual de que nos envergonhávamos foi assumida como um mérito excelso, quase religioso, tradução do amor evangélico aos pobres no quadro da luta de classes. Não podendo conquistar o sucesso, instituímos o ufanismo do fracasso. Depois disso, que nos resta, senão abdicarmos de existir como nação e nos conformarmos com a condição de entreposto da ONU?
O estado atual em que se encontra a nossa cultura e a mentalidade da grande maioria é o reflexo de anos de doutrinação que acredita tão somente no paraíso terrestre, materialista, amoral e relativista. Incapaz de conceber a existência de uma transcendencia, se não e tão somente a vida imediata.
ResponderExcluirComo restaurar em minha alma a síntese clássica de cultura,pensamento e vida numa sociedade gnóstica?
ResponderExcluirEu sinto que posso entregar-me por completo ao espiritual,à tentativa de aproximar-se de Deus.Porém,há aquele lado oculta presente na alma que deseja entregar-se inteiramente à vida dos instintos,aos anseios da carne,dirigindo os meus esforços no sentido de satisfazer os prazeres momentâneos.
Como atenuar esta tensão dos contrários?
Obrigado, Fernando e Ruan pela visita.
ResponderExcluir"Tudo me é permitido, mas nem tudo me convém" -- São Paulo disse isso porque sentia dentro de si a mesma tensão. A luta é diária, permanente, mas não podemos transformá-la num cavalo de batalha. Passo a passo, com serenidade, leveza e abertura de espírito, superamos um pouco a cada dia.
Não sei se é um entendimento superficial da minha parte, mas depois que li este Artigo do Olavo o que é evidenciado pareceu tão óbvio. Resumindo: para a povo dominar as suas capacidades econômicas é preciso antes ter dominado a 'capacidade de pensar', a espiritualidade e a língua. Mas fiquei pensando, e me vieram umas dúvidas:
ResponderExcluirSeria por esse motivo que todos os povos que sabemos que existiram
- Mas não temos quase nenhuma informação sobre eles - desapareceram?
E será que num país como o Brasil, onde essa - na minha opinião - sequência lógica não é seguida, a pessoa que a segue se destaca das demais na sua área - de aplicação de tempo/estudo/esforço - ? Ou aproveitar que estamos na selva e sermos selvagens é o caminho para um desenvolvimento pessoal ?
"Aproveitar que estamos na selva e sermos selvagens" é a pior das soluções, meu caro!
ResponderExcluirA criação judaica envolve o apreço aos mandamentos de lei divina e aos estudos. Há um dito que diz que os bens materiais você pode perdê-los, já o conhecimento poderá levar para onde for. E não por menos temos uma etnia que é a minoria das minorias mas cujos membros prosperam no meios de comunicação, financeiros, literários etc. Me lembrou também a história do Dr. Ben Carson (filme mãos que curam, recomendo) o papel da leitura, da boa música, claro o incentivo mas principalmente o zelo pelas coisas do espírito o fizeram ser um neurocirurgião de grande sucesso. Faz todo o sentido seu texto (sei que fiz uma análise rasteira, mas acho que os exemplos singelos deem uma cor a mais ao que está brilhantemente ilustrado). Obrigado.
ResponderExcluirDavid L.
Olá, Rodrigo
ResponderExcluirComo se iniciar a na alta cultura? Por onde começar?
Obrigado, David. Grande abraço!
ResponderExcluirCaro Koskevat: sua pergunta exige uma resposta ampla demais para este espaço. Em termos de literatura, o ideal é começar pelos clássicos. Há boas traduções de alguns deles. E há ótimos autores de língua portuguesa, como Vieira, Camilo, Machado... Bons estudos!
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