“O dia em que o
capitão-mor Pedro Álvares Cabral levantou a cruz, que no capítulo atrás dissemos,
era 3 de maio, quando se celebra a invenção da Santa Cruz, em que Cristo Nosso Redentor
morreu por nós, e por esta causa pôs nome à terra, que havia descoberta, de
Santa Cruz, e por este nome foi conhecida muitos anos: porém como o demônio com
o sinal da cruz perdeu todo o domínio, que tinha sobre os homens, receando
perder também o muito que tinha nos desta terra, trabalhou que se esquecesse o
primeiro nome, e lhe ficasse o de Brasil, por causa de um pau assim chamado, de
cor abrasada e vermelha, com que tingem panos, que o daquele divino pau que deu
tinta e virtude a todos os sacramentos da igreja, e sobre que ela foi
edificada, e ficou tão firme e bem fundada, como sabemos, e porventura por isto
ainda que ao nome de Brasil ajuntaram o de estado, e lhe chamaram estado do
Brasil, ficou ele tão pouco estável, que com não haver hoje 100 anos, quando
isto escrevo, que se começou a povoar, já se hão despovoados alguns lugares, e
sendo a terra tão grande, e fértil, como adiante veremos, nem por isso vai em
aumento, antes em diminuição.
Disto dão alguns
a culpa aos reis de Portugal, outros aos povoadores; aos reis pelo pouco caso
que haviam feito deste tão grande estado, que nem o título quiseram dele, pois
intitulando-se senhores de Guiné, por uma caravelinha que lá vai, e vem, como
disse o Rei do Congo, do Brasil não se quiseram intitular, nem depois da morte
de el-rei d. João Terceiro, que o mandou povoar e soube estimá-lo, houve outro
que dele curasse, senão para colher suas rendas e direitos; e deste mesmo modo
se haviam os povoadores, os quais por mais arraigados, que na terra estivessem,
e mais ricos que fossem, tudo pretendiam levar a Portugal, e se as fazendas e
bens que possuíam soubessem falar também lhes haveriam de ensinar a dizer como
os papagaios, aos quais a primeira coisa que ensinam é papagaio real para
Portugal; porque tudo querem para lá, e isto não tem só os que de lá vieram,
mas ainda os que cá nasceram, que uns e outros usam da terra, não como senhores,
mas como usufrutuários, só para a desfrutarem, e a deixarem destruída.
Donde nasce
também, que nenhum homem nesta terra é repúblico, nem zela, ou trata do bem
comum, senão cada um do bem particular. Não notei eu isto tanto quanto o vi
notar um bispo de Tucuman da Ordem de S. Domingos, que por algumas destas
terras passou para a Corte, era grande canonista, homem de bom entendimento e
prudência, e assim ia muito rico; notava as coisas, e via que mandava comprar
um frangão, quatro ovos, e um peixe, para comer, e nada lhe traziam: porque não
se achava na praça nem no açougue, e se mandava pedir as ditas coisas, e outras
muitas a casas particulares lhas mandavam, então disse o bispo verdadeiramente
que nesta terra andam as coisas trocadas, porque toda ela não é república,
sendo-o cada casa; e assim é, que estando as casas dos ricos / ainda que seja a
custa alheia, pois muitos devem quanto têm / providas de todo o necessário,
porque tem escravos, pescadores, caçadores, que lhes trazem a carne e o peixe,
pipas de vinho e de azeite, que compram por junto: nas vilas muitas vezes se
não acha isto a venda. Pois o que é fontes, pontes, caminhos e outras coisas
públicas é uma piedade, porque atendo-se uns aos outros nenhum as faz, ainda
que bebam água suja, e se molhem ao passar dos rios, ou se orvalhem pelos
caminhos, e tudo isto vem de não tratarem do que há cá de ficar, senão do que
hão de levar para o reino.
Estas são as razões porque alguns, como muitos dizem, que não permanece o Brasil nem vai em crescimento; e a estas se pode ajuntar a que atrás tocamos de lhe haverem chamado estado do Brasil, tirando-lhe o de Santa Cruz, com que pudera ser estado, e ter estabilidade e firmeza.”
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