A entrevista que concedi ao jornal A Tribuna, de Santos, publicada no último sábado (imagem acima) saiu, por problemas de espaço, com alguns cortes. A seguir, publico a íntegra do bate-papo que tive, por e-mail, com o jornalista César Miranda:
A Tribuna: Entre
os autores analisados em seu livro encontram-se nomes clássicos (José de
Alencar, Manuel Antônio de Almeida, Raul Pompeia, Machado de Assis, Graça
Aranha etc.). Além destes ficcionistas, há também prosadores como João
Francisco Lisboa, Joaquim Felício dos Santos, Eduardo Prado, Nabuco e Taunay.
Por que a escolha dos escritores acima? Qual foi o critério? Tem alguma
admiração por eles?
Rodrigo Gurgel: O livro é uma compilação da série de
ensaios que iniciei, em 2010, no jornal Rascunho,
de Curitiba. Sou crítico literário do jornal desde 2006, mas em 2010 iniciei
essa série, cujo objetivo é reler os principais prosadores da literatura
brasileira, sejam ficcionistas ou não. A escolha desses autores nasce,
portanto, não de uma admiração pessoal, mas da necessidade de empreender esse
trabalho de releitura da prosa nacional. Trabalho, aliás, que continua e
chegará aos prosadores contemporâneos. Nesse primeiro volume, agora publicado,
tratamos dos prosadores do século XIX.
A Tribuna: Por
que considera Canaã, de Graça Aranha,
“o mais pedante romance brasileiro”?
Rodrigo Gurgel: Canaã
é um romance artificial, construído com o objetivo de defender algumas teses
caras ao seu autor. É apenas um mosaico de estilos diferentes, montado sobre um
plano esquemático, carregado de psicologismo hiperbólico e rasteiro. Vejam-se
os diálogos do romance: os personagens não conversam realmente, com
naturalidade, mas as falas são apenas justapostas, de maneira que cada
personagem represente um sistema filosófico ou determinados valores. É uma
sucessão monótona de discursos, na qual, aliás, o povo brasileiro é
ridicularizado do começo ao fim. Há algumas cenas famosas, que se tornaram
antológicas, como a do parto de Maria, quando o recém-nascido é devorado pelos
porcos, mas elas somente reforçam o esquematismo do romance. Como disse Otto
Maria Carpeaux, “Canaã só convence leitores inexperientes”. Por todos esses
motivos, o romance é de um pedantismo ímpar.
A Tribuna: Qual
sua opinião sobre a crítica literária atual?
Rodrigo Gurgel: A crítica literária atual, no Brasil,
pode ser dividida em dois grandes grupos. De um lado, temos críticos que seguem
as escolas estruturalistas e pós-estruturalistas. Eles pretendem submeter a
literatura a certas análises predominantemente lingüísticas, como se apenas a
lingüística pudesse dar conta das inúmeras características que compõem uma obra
literária. Esses críticos usam, quase sempre, um jargão cansativo, hermético,
que afasta o leitor e, na verdade, acaba não explicando nada. Thomas Pavel, um
dos críticos dessas escolas, diz, com acerto, que elas apenas criaram um “verniz
onírico”, mais nada. De outro lado, temos críticos que, seguindo ou não o
estruturalismo e o pós-estruturalismo, negam-se a realmente criticar. Eles
sofrem do que eu chamo de síndrome do crítico envergonhado. É uma espécie de
bom-mocismo, um tipo de hipocrisia. Esses críticos dizem que é impossível
julgar, que ninguém pode dizer se uma obra literária é boa ou não, se uma obra
literária deve ser lida ou não. Na verdade, o que eles querem é ser amigos de
todo mundo, passar a mão na cabeça dos escritores e tratar todos da mesma
forma, inclusive os que são medíocres. É claro que há críticos que fogem a
esses dois grupos, mas formam a minoria das minorias.
A Tribuna: Quais
críticos literários o senhor admira?
Rodrigo Gurgel: Otto Maria Carpeaux, um austríaco que
se naturalizou brasileiro e nos deixou muito mais que uma obra voltada à
crítica literária, mas o trabalho de um verdadeiro humanista, é, sem exageros,
genial. Outros críticos que sempre releio, pelos quais tenho grande admiração,
são Samuel Johnson, Charles Moeller, Northrop Frye, Edmund Wilson, Lionel
Trilling, Joseph Pearce e Marcel Reich-Ranicki. Entre os brasileiros, gosto de
Álvaro Lins, Augusto Meyer, Lúcia Miguel-Pereira, Temístocles Linhares, Wilson
Martins e, mais recentes, Alexandre Eulalio, João Alexandre Barbosa, Marisa
Lajolo, Alcir Pécora e Moacir Amâncio. No que se refere aos brasileiros,
citá-los não significa que concorde sempre com eles, mas são grandes inteligências,
que vêem a literatura não apenas sob o aspecto formalista, mas como um diálogo
com a experiência humana.
A Tribuna: No
bate-papo com leitores, o senhor vai falar também sobre a obra do escritor
Olavo de Carvalho. Inclusive, o senhor fez o texto da orelha do livro A filosofia
e seu inverso. Qual importância desse
livro do Olavo de Carvalho?
Rodrigo Gurgel: Olavo de Carvalho tem importância
fundamental na cultura brasileira. Seu livro O imbecil coletivo é um marco dos estudos culturais no Brasil e
será relido por todas as gerações futuras. Sem ele, será impossível ao
estudioso entender como a hegemonia marxista transformou o Brasil no paraíso da
mediocridade. Olavo também elaborou um original, seriíssimo trabalho de análise
do pensamento de Aristóteles, no seu Introdução
à Teoria dos Quatro Discursos. Além disso, ele é um polemista magistral,
uma das raríssimas vozes que tiveram a coragem de, nas últimas décadas, se
antepor à nefasta hegemonia cultural da esquerda. Neste seu último livro, A filosofia e seu inverso, que reúne alguns
de seus artigos e ensaios produzidos nos últimos anos, ele recusa, mais uma
vez, o doutrinamento pós-moderno, ou seja, recusa-se a aceitar o tripé
corruptor dos tempos atuais, um tripé formado por relativismo, hedonismo e
ateísmo.
A Tribuna: Quando
nasceu sua paixão pelas letras? Existe algum fato marcante?
Rodrigo Gurgel: Creio que nasceu do amor pelos livros,
algo que, na minha família, sempre foi natural. Nós convivíamos com os livros
como se fizessem parte da família. Lembro-me que meu pai me colocava sentado
sobre o tampo da sua escrivaninha, abria no meu colo um dos volumes do Tesouro da Juventude e lia histórias
para mim. É minha primeira lembrança em relação aos livros. Meu pai tinha uma
vasta biblioteca, formada principalmente de livros jurídicos, e meus irmãos, minha
mãe e eu tínhamos de, uma vez por ano, limpar todos os volumes, tarefa que
demorava vários dias... Era uma festa, um trabalho feito com união, amor,
alegria. Portanto, ler, para mim, sempre foi algo tão natural quanto respirar.
Lembro-me, por exemplo, de minha avó paterna, que me deu para ler As mil e uma noites. E também da
discussão que meu pai provocou, quando descobriu que ela me dera Madame Bovary para ler. Eu só tinha doze
anos. Depois da discussão, que presenciei, minha reação foi a mais esperada:
ler Flaubert com atenção ainda maior.
A Tribuna: Quais
são os livros que o acompanham em suas viagens? Que tipos de enredos prefere?
Rodrigo Gurgel: Ler apenas por prazer tornou-se algo
muito raro na minha vida, infelizmente. Estou sempre lendo por motivos profissionais.
Mas se tivesse de escolher alguns livros para ler despreocupadamente, apenas
por prazer, eu ficaria com os escritores que mais amo: Flannery O’Connor,
George Bernanos, Henry James, Joseph Conrad, Tolstói e Dostoyevski.
A Tribuna: O
que o senhor leu recentemente que acha que vale a pena ler?
Rodrigo Gurgel: O ensaio de Ricardo Souza de Carvalho, A Espanha de João Cabral e Murilo Mendes;
e Rumor dos cortejos, uma coletânea
de poesia cristã francesa do século XX, organizada e traduzida por Pablo
Simpson.
A Tribuna: Gostaria
de acrescentar algo mais?
Rodrigo Gurgel: Olavo
de Carvalho diz, com acerto, que “a crítica literária é a primeira disciplina
filosófica, porque a crítica é a expressão intelectual mais imediata da própria
experiência literária”. E a experiência literária, por sua vez, nada mais é que
uma abertura à variedade da experiência humana. Ler literatura, portanto, é
alargar a imaginação, ampliar nossa visão sobre as possibilidades da
existência, inclusive sobre as possibilidades éticas ou morais da existência.
Se entendemos a literatura assim, então a função do crítico é mostrar essas
possibilidades, tomar o leitor pela mão e mostrar a ele um dos inúmeros
caminhos possíveis. Para fazer isso, ele precisa recusar a arrogância
epistêmica e o monismo de julgamento que imperam hoje. Ele deve ler a obra
literária perguntando também até que ponto ela realmente responde ao que
pretendeu ser, se ela realmente consegue ser uma estrutura coerente. É o que
busco fazer no meu trabalho e neste livro, Muita retórica – Pouca literatura.
Excelente entrevista. Meus cumprimentos.
ResponderExcluirPS.: O Sr. diz do Canaã:
"Vejam-se os diálogos do romance: os personagens não conversam realmente, com naturalidade, mas as falas são apenas justapostas, de maneira que cada personagem represente um sistema filosófico ou determinados valores."
Aqui nós temos um exemplo perfeito desse fenômeno.
Prezado Rodrigo. Sou há tempos seu leitor, tanto aqui no blog quanto no jornal Rascunho. Seu livro é um alento em meio à mediocridade da crítica literária que se faz hoje no Brasil. Até por isso, gostaria de lhe perguntar o que você acha dos cursos de Letras. Acho que já sei a reposta, mas você recomenda algum? Ou é melhor, de fato, seguir um caminho de autodidata nesse campo?
ResponderExcluirObrigado,
Henrique
Bela entrevista. Parece que o Jornal boicotou o nome do Olavo, como sempre.
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