“Sua mera
existência [da Igreja Católica] como ‘metarrelato’, como visão densa do mundo, que utiliza ainda um
conceito forte de verdade objetiva, resulta
intolerável numa atmosfera intelectual presidida pelo pensamento débil, pela
desconstrução pós-moderna, pela ‘ditadura do relativismo’ e pela convicção de
que a crença em absolutos é sinônimo de fundamentalismo e intolerância.”
abril 28, 2012
A ditadura do pensamento débil e a Igreja
abril 27, 2012
A dissidência, a fé dos simples e o neoclericalismo
Ótimo artigo do vaticanista Andrea Tornielli,
publicado em Vatican Insider. Serve como uma luva a grande parte do mundo
eclesiástico brasileiro, incluindo os teólogos esquerdistas.
abril 26, 2012
A importância da coragem literária
“[...] A
necessidade de cálculos prolongados ou o estabelecimento de esquemas complicados
impedem o medroso e o inexperiente de se lançar a um estudo mais complexo; mas
se dispomos de suficiente habilidade para analisar esses cálculos e estudar os
princípios em que se baseiam, descobriremos que nossos medos careciam de
fundamento. Divide e conquistarás é
um princípio que se ajusta tanto à ciência como à política. As complicações
constituem uma espécie de confederação que, enquanto está unida, desafia de
forma ousada o cérebro mais ativo e poderoso; contudo, quando a desagregamos e
tomamos suas partes em separado, pode-se submetê-la sem dificuldade e
destruí-la sem oposição. ”
abril 24, 2012
Só uma coisa é sempre mortal
“Quando, depois
de muitas mortes, morremos pela última vez, então nesse ato de vida suprema a
existência deixou de morrer. Só uma coisa é sempre mortal: não querer morrer
enquanto se vive. Toda morte realizada voluntariamente é origem de vida.”
— Hans Urs von Balthasar
abril 20, 2012
abril 19, 2012
Quando o sal ganha verdadeiro sabor – 7 anos de pontificado
Para comemorar o
7º ano do pontificado de Bento XVI, publico, a seguir, um trecho de sua homilia
na Praça Terreiro do Paço de Lisboa, no dia 11 de maio de 2010:
Sabemos que não lhe faltam filhos
insubmissos e até rebeldes, mas é nos Santos que a Igreja reconhece os seus
traços característicos e, precisamente neles, saboreia a sua alegria mais
profunda. Irmana-os, a todos, a vontade de encarnar na sua existência o Evangelho,
sob o impulso do eterno animador do Povo de Deus que é o Espírito Santo.
Fixando os seus Santos, esta Igreja local concluiu justamente que a prioridade
pastoral hoje é fazer de cada mulher e homem cristão uma presença irradiante da
perspectiva evangélica no meio do mundo, na família, na cultura, na economia,
na política. Muitas vezes preocupamo-nos afanosamente com as consequências
sociais, culturais e políticas da fé, dando por suposto que a fé existe, o que
é cada vez menos realista. Colocou-se uma confiança talvez excessiva nas
estruturas e nos programas eclesiais, na distribuição de poderes e funções; mas
que acontece se o sal se tornar insípido?
abril 18, 2012
Para esquerdistas, “mensalão é salário justo de operário”
O
parnaso-marxismo hegemonizou a estética faz tempo, mas a denúncia irônica de
Régis Bonvicino será sempre atual. Abaixo, apenas alguns trechos do seu
brilhante libelo “O Parnaso-marxismo”:
O parnaso-marxismo não tem vigor, mas tem
rancor. O rancor é o seu verdadeiro “método crítico”.
O parnaso-marxismo fechou – como é
habitual – os olhos para o social-liberalismo do PT de Lula. Se não faz crítica
(o rancor é seu verdadeiro “método crítico”), em compensação, também não faz
autocrítica. Para ele, “mensalão” é salário justo de operário.
O Parnaso-marxismo Inc. tranforma – atrás de sua tela protetora marxiana –
faculdades de Letras públicas em res
privata.
abril 16, 2012
A reconquista da alegria
Pensamentos de
Bento XVI extraídos do excelente artigo de Andrea Monda, “Un Papa raro: con ‘sentido del humor’”:
“Toda a minha
vida está atravessada sempre por um fio condutor que é o seguinte: o
cristianismo da alegria alarga os horizontes.”
“Se hoje a
humildade foi desacreditada como virtude, não será de todo supérfluo observar
que esse descrédito coincide com a grande regressão da alegria na literatura e
na filosofia contemporâneas.”
“O elemento
constitutivo do cristianismo é a alegria. Alegria não no sentido de uma
diversão superficial, cujo fundo pode ser também a desesperação.”
abril 13, 2012
É pouco, CNBB, muito pouco
Não basta uma Nota Oficial – tímida, burocrática e
meramente protocolar –, senhores bispos. Não basta uma Nota Oficial que ninguém
lê. Queremos ouvi-los clamando nos altares, denunciando em alta e indignada voz
nas praças públicas, nos jornais, nas rádios, na Internet. Queremos ver, ouvir
e participar da indignação dos senhores e de toda a Igreja. Queremos nos sentir verdadeiramente amparados e
defendidos por nossos pastores. Queremos vê-los e
ouvi-los agindo, à luz do dia, segundo a exortação de São Paulo: “Não vos
conformeis com este mundo” (Rm 12, 2). Façam mais pela verdade, senhores
bispos! Façam mais pela vida!
abril 05, 2012
A homilia que será lembrada para sempre
Na
história da Igreja Católica, poucas vezes um papa investiu, em suas homilias, contra
um problema específico – e de forma clara, objetiva, sem usar recursos
metafóricos. O Beato João Paulo II inaugurou, no século XX, o uso desse
discurso direto, chegando a, em algumas oportunidades, admoestar publicamente
os que se encontravam no caminho do erro.
Hoje,
durante a Santa Missa Crismal, Bento XVI, movido pelo Espírito Santo, pleno de lucidez
teológica e amor paternal, respondeu não só ao “Chamado à desobediência” dos padres austríacos, mas também àqueles que, pertencentes à Igreja Universal,
semeiam a cizânia, a confusão entre os fieis, difundindo uma teologia “mais
voluntariosa que iluminada, inteiramente dedicada à árdua e improvável tarefa
de salvar, através de suas próprias categorias, a Jesus Cristo e Sua Palavra”,
como bem afirmou, com evidente ironia, Dom Francesco Moraglia, o novo Patriarca
de Veneza.
Chamando
o clero à obediência, ao abandono do secularismo e do comportamento laxista –
aliás, tão comum entre padres e bispos brasileiros –, Bento XVI foi claro: “[...]
A configuração a Cristo é o pressuposto e a base de toda a renovação. [...] Os
Santos indicam-nos como funciona a renovação e como podemos servi-la. E
fazem-nos compreender também que Deus não olha para os grandes números nem para
os êxitos exteriores, mas consegue as suas vitórias sob o sinal humilde do grão
de mostarda”. De fato, como dizia o Beato Cardeal John Henry Newman, “a crítica
à Igreja sem disposição de obedecer resulta necessariamente estéril”.
Mais
que uma crítica clara aos que desejam revolucionar a Igreja e lutam abertamente
contra a Santa Tradição e o Magistério, as palavras de Bento XVI são um apelo a
que toda a hierarquia eclesial retome o “zelo das almas”: “Não se faça a minha
vontade, mas a tua: esta é a palavra que revela o Filho, a sua humildade e
conjuntamente a sua divindade, e nos indica a estrada”.
Abaixo,
segue o texto integral da homilia:
Amados irmãos e irmãs!
Nesta Santa Missa, o nosso
pensamento volta àquela hora em que o Bispo, através da imposição das mãos e da
oração consacratória, nos integrou no sacerdócio de Jesus Cristo, para sermos
«consagrados na verdade» (Jo 17, 19), como Jesus pediu ao Pai na sua Oração
Sacerdotal. Ele mesmo é a Verdade. Consagrou-nos, isto é, entregou-nos para
sempre a Deus, a fim de que, a partir de Deus e em vista d’Ele, pudéssemos
servir os homens. Mas somos também consagrados na realidade da nossa vida?
Somos homens que atuam a partir de Deus e em comunhão com Jesus Cristo? Com
esta pergunta, o Senhor está diante de nós, e nós diante d’Ele. «Quereis viver
mais intimamente unidos a Cristo e configurar-vos com Ele, renunciando a vós
mesmos e permanecendo fiéis aos compromissos que, por amor de Cristo e da sua
Igreja, aceitastes alegremente no dia da vossa Ordenação Sacerdotal?» Tal é a
pergunta que, depois desta homilia, será dirigida singularmente a cada um de
vós e a mim mesmo. Nela, são pedidas sobretudo duas coisas: uma união íntima,
mais ainda, uma configuração a Cristo e, condição necessária para isso mesmo,
uma superação de nós mesmos, uma renúncia àquilo que é exclusivamente nosso, à
tão falada autorrealização. É-nos pedido que não reivindique a minha vida para
mim mesmo, mas a coloque à disposição de outrem: de Cristo. Que não pergunte:
Que ganho eu com isso? Mas sim: Que posso eu doar a Ele e, por Ele, aos outros?
Ou mais concretamente ainda: Como se deve realizar esta configuração a Cristo,
que não domina mas serve, não toma mas dá. Como se deve realizar na situação
tantas vezes dramática da Igreja de hoje? Recentemente, num país europeu, um
grupo de sacerdotes publicou um apelo à desobediência, referindo ao mesmo tempo
também exemplos concretos de como exprimir esta desobediência, que deveria
ignorar até mesmo decisões definitivas do Magistério, como, por exemplo, na
questão relativa à Ordenação das mulheres, a propósito da qual o beato Papa
João Paulo II declarou de maneira irrevogável que a Igreja não recebeu, da
parte do Senhor, qualquer autorização para o fazer. Será a desobediência um
caminho para renovar a Igreja? Queremos dar crédito aos autores deste apelo
quando dizem que é a solicitude pela Igreja que os move, quando afirmam estar
convencidos de que se deve enfrentar a lentidão das Instituições com meios
drásticos para abrir novos caminhos, para colocar a Igreja à altura dos tempos
de hoje. Mas será verdadeiramente um caminho a desobediência? Nela pode-se
intuir algo daquela configuração a Cristo que é o pressuposto para toda a
verdadeira renovação, ou, pelo contrário, não é apenas um impulso desesperado
de fazer qualquer coisa, de transformar a Igreja segundo os nossos desejos e as
nossas ideias?
Mas o problema não é assim
tão simples. Porventura Cristo não corrigiu as tradições humanas que ameaçavam
sufocar a palavra e a vontade de Deus? É verdade que o fez, mas para despertar
novamente a obediência à verdadeira vontade de Deus, à sua palavra sempre
válida. O que Ele tinha a peito era precisamente a verdadeira obediência,
contra o arbítrio do homem. E não esqueçamos que Ele era o Filho, com a
singular autoridade e responsabilidade de desvendar a autêntica vontade de
Deus, para deste modo abrir a estrada da palavra de Deus rumo ao mundo dos
gentios. E, por fim, Ele concretizou o seu mandato através da sua própria
obediência e humildade até à Cruz, tornando assim credível a sua missão. Não se
faça a minha vontade, mas a tua: esta é a palavra que revela o Filho, a sua
humildade e conjuntamente a sua divindade, e nos indica a estrada.
Deixemo-nos interpelar por
mais uma questão: Não será que, com tais considerações, o que na realidade se
defende é o imobilismo, a rigidez da tradição? Não! Quem observa a história do
período pós-conciliar pode reconhecer a dinâmica da verdadeira renovação, que
frequentemente assumiu formas inesperadas em movimentos cheios de vida e que
tornam quase palpável a vivacidade inexaurível da santa Igreja, a presença e a ação
eficaz do Espírito Santo. E se olharmos para as pessoas de quem dimanaram, e
dimanam, estes rios pujantes de vida, vemos também que, para uma nova
fecundidade, se requer o transbordar da alegria da fé, a radicalidade da
obediência, a dinâmica da esperança e a força do amor.
Queridos amigos, daqui se
vê claramente que a configuração a Cristo é o pressuposto e a base de toda a
renovação. Mas talvez a figura de Cristo nos apareça por vezes demasiado alta e
grande para podermos ousar tomar as suas medidas. O Senhor sabe-o. Por isso
providenciou «traduções» em ordens de grandeza mais acessíveis e próximas de
nós. Precisamente por este motivo, São Paulo resolutamente diz às suas
comunidades: Imitai-me, mas eu pertenço a Cristo. Ele era para os seus fiéis
uma «tradução» do estilo de vida de Cristo, que eles podiam ver e à qual podiam
aderir. A partir de Paulo e ao longo de toda a história, existiram
continuamente tais «traduções» do caminho de Jesus em figuras históricas vivas.
Nós, sacerdotes, podemos pensar numa série imensa de sacerdotes santos que vão
à nossa frente para nos apontar a estrada, a começar por Policarpo de Esmirna e
Inácio de Antioquia, passando por grandes Pastores como Ambrósio, Agostinho e
Gregório Magno, depois Inácio de Loiola, Carlos Borromeu, João Maria Vianney,
até chegar aos sacerdotes mártires do século XX e, finalmente, ao Papa João
Paulo II, que, na acção e no sofrimento, nos serviu de exemplo na configuração
a Cristo, como «dom e mistério». Os Santos indicam-nos como funciona a
renovação e como podemos servi-la. E fazem-nos compreender também que Deus não
olha para os grandes números nem para os êxitos exteriores, mas consegue as
suas vitórias sob o sinal humilde do grão de mostarda.
Queridos amigos, queria
ainda, brevemente, acenar a duas palavras-chave da renovação das promessas
sacerdotais, que deveriam induzir-nos a refletir nesta hora da Igreja e da
nossa vida pessoal. Em primeiro lugar, é-nos recordado o facto de sermos – como
se exprime Paulo - «dispensadores dos mistérios de Deus» (1 Cor 4, 1) e que nos
incumbe o ministério de ensinar, o (munus docendi), que constitui precisamente
uma parte desta distribuição dos mistérios de Deus, onde Ele nos mostra o seu
rosto e o seu coração, para Se dar a Si mesmo. No encontro dos Cardeais por
ocasião do recente Consistório, diversos Pastores, baseando-se na sua
experiência, falaram dum analfabetismo religioso que cresce no meio desta nossa
sociedade tão inteligente. Os elementos fundamentais da fé, que no passado toda
e qualquer criança sabia, são cada vez menos conhecidos. Mas, para se poder
viver e amar a nossa fé, para se poder amar a Deus e, consequentemente,
tornar-se capaz de O ouvir corretamente, devemos saber aquilo que Deus nos
disse; a nossa razão e o nosso coração devem ser tocados pela sua palavra. O
Ano da Fé, a comemoração da abertura do Concílio Vaticano II há 50 anos, deve
ser uma ocasião para anunciarmos a mensagem da fé com novo zelo e nova alegria.
Esta mensagem, na sua forma fundamental e primária, encontramo-la naturalmente
na Sagrada Escritura, que não leremos nem meditaremos jamais suficientemente.
Nisto, porém, todos sentimos necessidade de um auxílio para a transmitir
rectamente no presente, de modo que toque verdadeiramente o nosso coração. Este
auxílio encontramo-lo, em primeiro lugar, na palavra da Igreja docente: os
textos do Concílio Vaticano II e o Catecismo da Igreja Católica são os
instrumentos essenciais que nos indicam, de maneira autêntica, aquilo que a
Igreja acredita a partir da Palavra de Deus. E naturalmente faz parte de tal
auxílio todo o tesouro dos documentos que o Papa João Paulo II nos deu e que
está ainda longe de ser cabalmente explorado.
Todo o nosso anúncio se
deve confrontar com esta palavra de Jesus Cristo: «A minha doutrina não é
minha» (Jo 7, 16). Não anunciamos teorias nem opiniões privadas, mas a fé da
Igreja da qual somos servidores. Isto, porém, não deve naturalmente significar
que eu não sustente esta doutrina com todo o meu ser e não esteja firmemente
ancorado nela. Neste contexto, sempre me vem à mente o seguinte texto de Santo
Agostinho: Que há de mais meu do que eu próprio? E no entanto que há de menos
meu do que o sou eu mesmo? Não me pertenço a mim próprio e torno-me eu mesmo
precisamente pelo facto de me ultrapassar a mim próprio e é através da
superação de mim próprio que consigo inserir-me em Cristo e no seu Corpo que é
a Igreja. Se não nos anunciamos a nós mesmos e se, intimamente, nos tornamos um
só com Aquele que nos chamou para sermos seus mensageiros de tal modo que
sejamos plasmados pela fé e a vivamos, então a nossa pregação será credível.
Não faço publicidade de mim mesmo, mas dou-me a mim mesmo. Como sabemos, o Cura
d’Ars não era um erudito, um intelectual. Mas, com o seu anúncio, tocou os
corações das pessoas, porque ele mesmo fora tocado no coração.
A última palavra-chave, a
que ainda queria aludir, designa-se zelo das almas (animarum zelus). É uma expressão fora de moda, que hoje já quase
não se usa. Nalguns ambientes, o termo «alma» é até considerado como palavra
proibida, porque – diz-se – exprimiria um dualismo entre corpo e alma, cometendo
o erro de dividir o homem. Certamente o homem é uma unidade, destinada com
corpo e alma à eternidade. Mas isso não pode significar que já não temos uma
alma, um princípio constitutivo que garante a unidade do homem durante a sua
vida e para além da sua morte terrena. E, enquanto sacerdotes, preocupamo-nos
naturalmente com o homem inteiro, incluindo precisamente as suas necessidades
físicas: com os famintos, os doentes, os sem-abrigo; contudo, não nos
preocupamos apenas com o corpo, mas também com as necessidades da alma do
homem: com as pessoas que sofrem devido à violação do direito ou por um amor
desfeito; com as pessoas que, relativamente à verdade, se encontram na
escuridão; que sofrem por falta de verdade e de amor. Preocupamo-nos com a
salvação dos homens em corpo e alma. E, enquanto sacerdotes de Jesus Cristo,
fazemo-lo com zelo. As pessoas não devem jamais ter a sensação de que o nosso
horário de trabalho cumprimo-lo conscienciosamente, mas antes e depois
pertencemo-nos apenas a nós mesmos. Um sacerdote nunca se pertence a si mesmo.
As pessoas devem notar o nosso zelo, através do qual testemunhamos de modo
credível o Evangelho de Jesus Cristo. Peçamos ao Senhor que nos encha com a
alegria da sua mensagem, a fim de podermos servir, com jubiloso zelo, a sua
verdade e o seu amor. Amém.
abril 04, 2012
Memória e lágrimas: “Os desaparecidos – a procura de 6 em 6 milhões de vítimas do Holocausto”, de Daniel Mendelsohn
No Canto I da Eneida, o protagonista, Eneias, se depara, em certo templo de Cartago,
com um mural que retrata a Guerra de Troia, de que fora um dos poucos
sobreviventes. E, chorando, lastima: Sunt
lacrimae rerum, et mentem mortalia tangunt (“Há lágrimas nas coisas, e os
sofrimentos tocam nossa alma”). Para Daniel Mendelsohn, autor de Os desaparecidos – a procura de 6 em 6 milhões de vítimas do Holocausto, a primeira parte desse verso se transforma,
à medida que o escritor avança em sua busca, numa “espécie de legenda para
distâncias comoventemente insuperáveis criadas pelo tempo”. No caso de Eneias, o
adorno do templo cartaginês representou a revivescência de um fato terrível. No
que se refere a Mendelsohn, o autor testemunha emoção semelhante à do troiano quando
apresenta, a uma de suas entrevistadas, fotografias dos familiares mortos no
Holocausto: para ele, imagens de parentes quase desconhecidos, dos quais
tentava se aproximar décadas depois de terem sido assassinados; mas à idosa
sentada a seu lado, que convivera vários anos com aquelas pessoas e participara
dos acontecimentos brutais que as condenaram à morte, as fotos tinham um
significado pungente. “Eles estiveram lá e nós, não”, conclui Mendelsohn, e assevera:
“Há lágrimas nas coisas; mas todos nós choramos por razões diferentes”.
De fato, a ampla, exaustiva investigação de
Os desaparecidos é uma pugna
detetivesca, às vezes angustiosa, às vezes consoladora, mas sempre lacunar,
marcada pela distância não só temporal, não apenas física, mas também
psicológica. Em vão Mendelsohn tentará preencher o vácuo que o separa dos
familiares mortos sob o nazismo, pois, apesar de todas as suas inúmeras
descobertas, ele guarda uma torturante certeza:
[...]
quanto mais eu conversava com as pessoas, mais estava ciente de quanto
simplesmente não pode ser conhecido, em parte porque a coisa [...] jamais foi
testemunhada e, portanto, é agora incognoscível, e em parte porque a própria
memória daquelas coisas que foram testemunhadas pode pregar peças, pode omitir
o que é doloroso demais, ou ser enfeitada de modo a se adequar a um padrão do
qual gostamos.
Sim, nenhum esforço, nenhum empenho
poderá preencher as fissuras que nascem desta certeza: “Eles estiveram lá e
nós, não”. Ou, como diz padre António Vieira, “os discursos de quem não viu,
são discursos; os discursos de quem viu, são profecias”.
Mas, de que forma nasce Os desaparecidos? O que move seu autor
na direção do passado, em busca da vida e da morte de seis parentes – o tio-avô
materno, sua esposa e as quatro filhas – perdidos entre seis milhões de
vítimas?
Tudo começa por uma leve semelhança e as
reações que ela provoca. Quando menino, Mendelsohn tem alguns traços – certo
arco desenhado pela sobrancelha e a linha do queixo – de Shmiel Jäger, o
tio-avô. E sempre que os parentes veem a criança, a emoção, incontrolável,
aflora. Com o tempo, às perguntas sobre o motivo das lágrimas acrescenta-se a
personalidade do garoto que criva o avô materno – homem refinado, religioso,
que “transpira europeidade” – de perguntas e não se cansa de ouvi-lo contar histórias
familiares, dentre as quais, a dos seis mortos é a única que permanece
incompleta. Somem-se a tais elementos o adolescente que ama o estudo, a busca
da verdade, a incansável classificação de informações, e o adulto apaixonado
pela literatura clássica – e teremos o quadro propício à investigação serena,
lúcida, que Mendelsohn empreende, emocionando-se diante de cada nova descoberta,
sem desistir mesmo quando sofre decepções. Uma pesquisa que procura saber,
minuciosamente, não apenas como seis pessoas morreram, mas também como viveram
e... como viveram seus últimos momentos.
Daniel Mendelsohn cria, assim, uma
impressionante teia de memórias, na qual se entrecruzam o epistolário familiar,
genealogias, testemunhos de sobreviventes, viagens transoceânicas, história do antissemitismo,
exegese bíblica e poucos mas surpreendentes sincronismos.
Consciência
do efêmero
A estrutura do livro obedece a um permanente
diálogo entre as descobertas do autor e seus pensamentos sobre duas diferentes
interpretações da Torá: a do rabino francês
Shlomo ben Itz’hak, mais conhecido como Rashi, nascido em Troyes, em 1040, e a
do rabi Richard Elliot Friedman, mais recente, que busca ligar o texto antigo à
vida contemporânea. Os comentários desses estudiosos iluminam as idas e vindas
de Mendelsohn, que recupera várias das loucuras cometidas em nome do antissemitismo
– das vinganças ocasionais aos assassinatos sistemáticos das aktionen nazistas, passando por
diferentes perseguições de ordem econômica –, parte da história da Galícia, figuras
marcantes do pensamento judaico e o somatório de detalhes que compõem a existência
dos heróis anônimos que, vivendo na cidadezinha polonesa onde seu tio-avô
residia – Bolechow (hoje Bolekhiv, na Ucrânia) –, conseguiram sobreviver.
Mendelsohn constrói lentamente sua
narrativa, apoiando-se nesses fragmentos de memórias sofridas, das quais,
muitas vezes, avulta a pior das dores, a psíquica. Enquanto descortina a
verdade sobre seus familiares, também acorda para suas lembranças da infância –
quando se sentia decepcionado com seu povo, que lhe parecia, ele confessa, “um
povo de perdedores” – e da adolescência, quando compreende o que é ser judeu e
de como estava ligado a uma intrincada e milenar trama de relações.
Sessenta anos depois do Holocausto e duas
décadas após o suicídio de seu avô, que já não suportava a tortura do câncer, Mendelsohn
aprenderá que o trivial pode se transformar, com a passagem do tempo, em algo
merecedor de ser preservado. Cada nova revelação ampliará sua angústia,
fazendo-o tomar consciência de como “é fácil para alguém se perder, permanecer
desconhecido para sempre”. Durante os longos meses em que procura dar vida aos
que morreram, experimentará a decepção de não poder modificar o passado – e
também, durante raros e gratificantes momentos, a proximidade com os mortos,
até acordar para a verdade das palavras do irmão que o acompanha na maioria das
viagens: “o Holocausto não foi algo que simplesmente aconteceu, mas é um evento
que ainda está acontecendo”.
Duplo
investigador
Contudo, se há uma característica central
nessa busca que se defronta ora com testemunhos contraditórios, ora com relatos
que desmentem, inclusive, parte das histórias que o próprio avô de Mendelsohn contava,
ela tem um nome: fragilidade. Mas, terrível ironia, é exatamente essa
fragilidade, nascida da distância de que falávamos acima, que permite a existência
do narrador, daquele que se propõe contar a história.
Dentre outros méritos, o narrador de Os desaparecidos não hesita em expor até
mesmo divisões familiares, velhos ressentimentos. Não o faz para obedecer a
alguma doentia compulsão, mas porque – movido, aparentemente, pela sinceridade
– estabelece analogias entre o passado de seus ancestrais, próximos e
distantes, e as descobertas que realiza no presente, utilizando-as como parte de
seu método investigativo. Acompanhamos, assim, um duplo pesquisador: o que interroga
suas testemunhas e o que se questiona sobre de que maneira as respostas obtidas
não só o aproximam ou afastam da verdade, mas também lhe franqueiam as portas
do autoconhecimento e das raízes do judaísmo.
Dotado de bom humor, destituído de
qualquer ingenuidade, Mendelsohn está certo de que todo conhecimento traz, em
seu bojo, alguma dor – e que se há orgulho na acumulação do saber, há também a
possibilidade de conhecer certas coisas tarde demais para que nos façam algum
bem. Dessa forma, ele nunca deixa de se perguntar se deve ou não prosseguir.
Inspirando-se na técnica narrativa do
avô, plena de digressões, técnica reencontrada, anos mais tarde, em Homero,
Heródoto, Proust e Sebald, esse narrador detalhista mostra-se capaz de analisar
inclusive sutilezas linguísticas, com o objetivo de esclarecer, por exemplo, o
sentido de uma palavra em iídiche – e assim iluminar sua história e a de seu
povo.
Mas, insisto, trata-se, acima de tudo, de
uma voz consciente de que seu olhar e suas conclusões sobre o testemunho dos
que viveram o Holocausto é, somente, uma frágil aproximação da verdade.
O
homem que vê e se vê
Homenagem aos que se recusam a esquecer,
preito à memória, a cada página de Os
desaparecidos ressoa a exclamação: lembrem dos judeus de Bolechow, daqueles
milhares que foram humilhados gratuitamente e morreram sob a iniquidade. Ao
final, deles restaram apenas 48, dispersos sobre a terra. E lembrem-se também
daqueles seis, emudecidos pelo ódio.
Mais de três séculos antes de Os desaparecidos ser publicado, no ano
de 1674, em Roma, pronunciando, perante a rainha Cristina da Suécia, o panegírico
“Lágrimas de Heráclito”, António Vieira comentava o verso de Virgílio que Mendelsohn
escolheu como epígrafe:
Não
residem as lágrimas só nos olhos, que veem os objetos, mas nos mesmos objetos,
que são vistos; ali está a fonte, aqui está o rio; ali nascem as lágrimas, aqui
correm; e se as mesmas coisas que não veem, choram, quanto mais razão tem o
homem que vê e se vê?.
Quando chegamos às páginas finais de Os desaparecidos, descobrimos – ou lembramos – quão extensa é a dor que impregna a vida – ainda que tal verdade seja perceptível apenas ao “homem que vê e se vê” –, pois o relato de Daniel Mendelsohn nos fornece inúmeras, desoladoras razões para distinguir as lágrimas das coisas, chorar com elas – e também por nós.
Quando chegamos às páginas finais de Os desaparecidos, descobrimos – ou lembramos – quão extensa é a dor que impregna a vida – ainda que tal verdade seja perceptível apenas ao “homem que vê e se vê” –, pois o relato de Daniel Mendelsohn nos fornece inúmeras, desoladoras razões para distinguir as lágrimas das coisas, chorar com elas – e também por nós.
abril 03, 2012
Puro pedantismo
No Rascunho
deste mês, minha análise do romance Canaã, de Graça Aranha: “Jamais entendi por
qual motivo afirma-se que Canaã é um
romance nacionalista — e, consequentemente, teria sido uma das obras que
anteciparam as ideias da Semana de 22. A bem da verdade, se há exaltação dos
valores nacionais nesse livro, estão descritos às avessas — ou foram
encontrados por algum crítico fantasioso. [...] A cada página, reaparece o fel
do naturalismo, pretensamente científico, de Aluísio Azevedo. Eco da escola
evolucionista e do germanismo de Tobias Barreto, de quem Graça Aranha foi
discípulo, Canaã também apresenta
respingos da lama frenologista e preconceituosa de Mestiçagem, degenerescência e crime, de Nina Rodrigues”.
abril 02, 2012
Ao ego de Leonardo Boff, sem retoques
Alguém, por favor, avise a Leonardo Boff que ninguém
está aguardando por ele na Igreja Católica; que não somos agradecidos a ele – e
a outros teólogos da libertação – pela cizânia que semearam entre nós (e continuam tentando semear); que desejamos que ele continue vendendo bem os seus livros de
teologia New Age, publicados por uma editora supostamente fransciscana, pois o
que seria do mercado editorial se não existisse subliteratura?; e que a Igreja,
Bento XVI e nós, católicos fieis a Roma, dormimos todas as noites sem dar a
mínima para o que ele pensa, deixou de pensar ou falou aos esquerdistas empregados no Estadão.
abril 01, 2012
Pantomimas no Domingo de Ramos (ou, se preferirem: Para onde vai a Igreja no Brasil?)
Hoje, porta de entrada para a Semana Santa, fui
brindado com altas doses de populismo durante a missa. Não, não bastaram os
cânticos semelhantes a marchinhas de Carnaval, em alto volume, com os fiéis,
empolgados, quase sambando na procissão. O bom padre, aparentemente certo de
estar fazendo o melhor, primeiro dispensou-se de pronunciar a homilia, pois,
segundo ele, “nada pode substituir o que que cada um sente em seu coração”. Antes
do ofertório, contudo, foi enfático ao falar sobre a importância da coleta para
a Campanha da Fraternidade – e insistiu que fôssemos “generosos”. No Pai Nosso,
inventou um teatrinho alegre, exigindo que todos erguessem a mão direita para o
alto – a fim de “segurar na mão de Jesus” – e com a esquerda apertassem “com
força” o ombro do irmão que estivesse ao lado, pois precisamos “demonstrar como
somos verdadeiramente unidos” (para minha sorte, a pessoa que estava a meu lado
era uma frágil octogenária...). Antes da comunhão, disse que queria ver “todos
sorrindo, todos com alegria”, pois ele e os ministros não estavam “dando veneno”
às pessoas. E insistiu que devemos sempre recusar a comunhão quando o “padre
ou ministro não sorri”. Ainda insatisfeito, recusou-se a dar a bênção final,
alegando que, “depois de tantos anos de sacerdócio”, seu “estoque de bênçãos
tinha se esgotado” – pelo visto, ele realmente acredita que a bênção é obra
pessoal sua, e não fruto da Graça de Deus, da qual ele serve, apenas, como
intermediário. E, respondendo ao apelo do padre, a assembleia novamente se
transformou num rancho de Carnaval. Parti, então, para casa, em busca do silêncio
do meu lar e da homilia de Bento XVI, deixando um padre realizado, certo de ter
feito o melhor, não sem antes que ele, sorrindo, feliz, perguntasse a todos, de
maneira a finalizar dignamente a celebração: “Até que a missa não demorou
muito, né, pessoal?!”. Foram suas últimas e santas palavras.