agosto 04, 2011

Vibrato

Ao longe é possível ouvir os primeiros motores, as buzinas que, mal iniciada a manhã, fervem nos engarrafamentos. O dia traz sua parcela de loucura, diversa daquela que a noite levou, mas igualmente loucura. Ou não. Engano-me. Na verdade, há mais de escravatura em tudo que vejo – no entanto, cada gesto mecânico, manhã após manhã, esconde um germe de consciência. As pequenas coisas, ainda que preservem sua aparência cotidiana, podem não expressar o cansaço da repetição, a melancolia da mesmice. Para que a mudança de marcha no automóvel cercado de ônibus, edifícios, outros carros e autômatos que correm seja diferente é preciso que o homem esteja além do gesto – ele o repete, sempre o mesmo, meses infinitos, e no entanto seu coração não está ali, preso à embreagem, ao câmbio, aos motores e buzinas, à ladainha das notícias que anunciam o mundo igual e desanimador. Nesse homem há espaço – frágil câmara – para uma linha de poema que a memória preservou, para um olhar, breve mas surpreso, ao ipê que explodiu em roxo ou amarelo subitamente; ou para uma oração: talvez a fórmula que sua mãe lhe ensinou no passado, certa noite, antes de dormir, talvez apenas o vibrato de uma incerteza, pensamento em descompasso com a loucura matinal, instante que não o aparta da vida, mas lhe diz que tem de haver mais, e faz germinar nele, pelo menos, a dúvida.

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