janeiro 22, 2011

Como o governo pauta a literatura

Como vocês sabem, fui entrevistado, pela Revista Educação, sobre a recente tentativa de censura ao livro Caçadas de Pedrinho, de Monteiro Lobato. A matéria, escrita pelo jornalista Sérgio Rizzo, merece leitura atenta.

Mas agora que a revista está nas bancas e na web há vários dias, quero partilhar com os leitores a íntegra de minhas respostas. Elas abordam vários aspectos do problema, inclusive a censura governamental – tácita, é verdade – que já ocorre. Vejam:

Revista Educação: – Como você analisa o “imbróglio Lobato”? Ou: o que ele tem a nos dizer de mais importante sobre o Brasil hoje? Qual o problema central revelado pelo episódio?

– O “imbróglio Lobato” nasce de certo problema básico: um Estado paternalista, que se acredita tutor dos cidadãos, que trata os cidadãos não como indivíduos capazes de exercer seus direitos e deveres, em termos civis e políticos, mas como filhos imaturos, crianças incapazes de discernir, de escolher entre o bem e o mal. Um comportamento, aliás, contraditório, pois esse mesmo Estado, quando se trata de cobrar altos impostos, e de sucessivamente aumentar a carga de tributos, sabe tratar os cidadãos como se estes fossem adultos responsáveis.

Um Estado desse tipo gera governos que se veem como “pais” ou “mães” dos cidadãos, o que não deixa de ser uma infantilização da cidadania e da vida política em geral. Quando tal Estado incorpora na sua burocracia, nos seus órgãos de decisão, intelectuais e educadores que, além de compactuarem com esse paternalismo, atribuem a si mesmos o papel de supostos moralizadores ou higienistas da cultura, e portanto da literatura, acontecem fenômenos como o da tentativa de expurgar Lobato.

Não entrarei aqui no mérito das teorias e movimentos que defendem a racialização do país, pois isso nos levaria a uma outra discussão, mas é evidente que essas questões – chamadas de “politicamente corretas” – permeiam o “imbróglio Lobato” e são reforçadas pelo avanço de um movimento difuso que pretende, utilizando discursos ufanistas e demagógicos, salvar o Brasil de sua própria história, instaurar uma época de justiça social nunca antes conhecida, eliminar tudo o que, segundo uma visão parcial e partidária, signifique atraso, ignorância e injustiça.

Ora, nós já conhecemos experiências semelhantes, em maior ou menor grau, aqui e em outras nações; e o resultado é sempre o mesmo: quando governos se autoinstituem como “pais”, “mães” ou revisores da história, donos da verdade absoluta, há sempre uma semente de autoritarismo escondida nesse comportamento. E é ela que deflagra todas as formas – veladas ou não – de censura.

No caso específico de Monteiro Lobato, o comportamento do Conselho Nacional de Educação (CNE) é esquizofrênico – e toda forma de censura é, no fundo, pura esquizofrenia, pois sempre revela um delírio persecutório: você pinça do livro duas ou três expressões, retira-as do contexto, não só do contexto do próprio livro, mas do conjunto da obra do escritor e da época em que ele viveu, e transforma um autor genial, um homem que representou a vanguarda da indústria editorial brasileira, num racista contumaz. É de uma simplificação monstruosa.

Ainda bem que parcela da sociedade reagiu contra esse verdadeiro absurdo e impediu o pior, mas a solução que parece se desenhar no horizonte também não me agrada: a tal “nota explicativa” que se projeta colocar no livro, nota que pretende esclarecer os leitores sobre a presença de supostos preconceitos no texto, não é apenas uma censura velada, mas, pior, é o primeiro passo de um processo de tutela da criação literária.

Revista Educação: – Acredita que possa haver uma escalada de episódios semelhantes com base no raciocínio “politicamente correto” e na pressão de grupos contra obras que, na avaliação deles, “cometam” representações preconceituosas?

– Se a tal “nota explicativa” for aprovada, será um perigoso precedente, a partir do qual todo autor que não escrever de acordo com o que o CNE considera certo, justo e “politicamente correto” ou não será adotado nas escolas ou receberá uma reprimenda pública ou, no mínimo, uma “nota explicativa”, na qual serão listados seus supostos defeitos. Estaremos, assim, de volta aos autos de fé medievais ou a um passo da criação de um nihil obstat do CNE, por meio do qual o governo certificará que, aprovado pelos censores do Estado, o livro nada contém que seja contrário à fé, à moral e aos bons costumes.

Isso não é só patrulhamento cultural; é, principalmente, amordaçar a literatura. É como se o CNE dissesse: ou vocês escrevem o que nós queremos, o que nós achamos certo, ou vocês não serão distribuídos nas escolas. Um gesto desse tipo, num governo que, só em 2010, comprou 135 milhões de livros para serem distribuídos nas escolas, é mais que despótico, pois interfere em toda a produção editorial do país, coíbe editores, impõe controles rígidos sobre a produção literária e, claro, amordaça os escritores.

E tal precedente pode, sim, referendar ou autorizar o comportamento censório de segmentos da sociedade que, por qualquer motivo, se considerem desprestigiados ou perseguidos por este ou aquele livro, por este ou aquele autor. Ou seja, é a institucionalização da esquizofrenia, da censura e da perseguição política. Aliás, já vemos isso no exterior: esta semana, por exemplo, o escritor V. S. Naipaul, Prêmio Nobel de 2001, que é um crítico severo do Islã, foi obrigado a, depois de intensa crítica dos escritores islamitas, declinar do convite para comparecer ao Parlamento Europeu dos Escritores, em Istambul.

Voltando ao Brasil, a decisão do CNE pode servir como pretexto para comportamentos semelhantes – que pretendam silenciar ou condenar ao ostracismo escritores que não pensem de acordo com as normas governamentais – ou, igualmente pernicioso, pode dar início a uma onda de “notas explicativas”. Que nota o CNE mandaria publicar, por exemplo, em O primo Basílio, de Eça de Queirós? Poderia ser algo assim: “Alertamos alunos e professores de que esta obra destila um moralismo retrógrado, pois pune com a morte a mulher que tentou, por meio do adultério, se libertar do jugo de um casamento opressor e machista”. E no que se refere ao Memórias póstumas de Brás Cubas, de Machado de Assis? O CNE poderia escrever a seguinte nota: “Recomendamos aos professores e alunos que, durante a leitura, pulem o Capítulo LXVIII, intitulado ‘O vergalho’, pois o trecho referenda a prática do escravismo e, pior, defende a tese de que os seres humanos estão fadados a repetir nos seus semelhantes as injustiças de que foram vítimas”.

Os exemplos, claro, são risíveis, exatamente para mostrar o ridículo, o grotesco, o absurdo que existe em toda e qualquer forma de censura, de amordaçamento e de ato restritivo da livre expressão.

2 comentários:

  1. Caro Gurgel,

    Lendo sua entrevista fiquei deveras preocupado. Já explico por que. Ano passado publiquei um livro de contos em minha cidade, via financiamento público, e entre esses contos há um (em vista de toda essa questão "racista" que envolve a obra do Monteiro Lobato) que poderá me trazer problemas. O livro, naturalmente, dado a publicação independente, ou seja, não há editora alguma por trás, e em virtude da escassa repercussão que teve na mídia e de público, ainda, digamos assim, não foi "descoberto". O que não significa que não será. Pois foi distribuido na rede pública de ensino. O conto em questão, apesar da brevidade, é polêmico e pode dar margem a interpretações errôneas, até mesmo maldosas. Quer dizer, racistas. Claro está que essa não foi a minha intenção. Tinha em vista quando o escrevi outro objetivo, e acredito que o tenha atingido. Mas ele é sinuoso, insólito, creio que essa é a melhor palavra para descrevê-lo. Enfim, estou preocupado e gostaria de enviá-lo a você, se possível, para ouvir a sua opinião.
    Obrigado.

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  2. Meu caro Luís:

    Se o conto é "politicamente incorreto", há riscos, claro. Mas se você está preocupado com isso, não sou a pessoa mais adequada para ler o texto, pois considero-me um defensor do politicamente incorreto. Para uma avaliação "isenta" você precisa de um leitor "politicamente correto" (risos).

    Forte abraço!

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