Presente, passado remoto, futuro e passado próximo se alternam nos dois primeiros parágrafos do conto “A causa secreta”, de Machado de Assis, para introduzir o leitor na história que só pode ser contada, sem dissimulações, agora (conforme o presente a partir do qual o narrador fala) que os três personagens estão mortos. História de algum modo embaraçosa, portanto, e também complexa, pois exige que o narrador recue “à origem da situação”. Assim Machado fisga o leitor: jogando com o tempo, sugerindo a gravidade dos fatos que levaram à cena inicial do conto – “[...] os dedos de Maria Luísa parecem ainda trêmulos, ao passo que há no rosto de Garcia uma expressão de severidade” – e escondendo de nós o que sente o terceiro personagem, Fortunato, que, “na cadeira de balanço, olhava para o teto”.
A partir do terceiro parágrafo, será Fortunato o centro da narrativa. Mas quem é, realmente, o homem que Garcia, então estudante de medicina, vê, en passant, saindo da Santa Casa? Um médico? Um samaritano? Mais tarde saberá que se trata de um “capitalista, solteiro” – e conhecerá, lentamente, muito mais.
Quando reencontra o homem que, por algum motivo, o impressionou, está no teatro, teatrinho de periferia, à qual “só os mais intrépidos ousavam estender os passos”. O “dramalhão cosido a facadas” hipnotiza Fortunato – e sua exagerada atenção desperta a curiosidade de Garcia. Este segue o primeiro, vendo-o caminhar “cabisbaixo, parando às vezes, para dar uma bengalada em algum cão que dormia”.
Antes, porém, o narrador nos oferece um detalhe curioso: Fortunato abandona o teatro assim que o drama termina, indiferente à peça seguinte, uma farsa. As sutilezas de Machado, bem sabemos, nunca são ornamentos inúteis, e não é diferente neste caso, em que o fato de o personagem desprezar uma peça cômica, mas redobrar sua atenção nos “lances dolorosos” do drama, é a primeira, tênue característica de Fortunato, complementada, logo a seguir, pelos cães que ele deixa ganindo enquanto caminha.
No próximo encontro, surpreendente, Garcia descobrirá que esse homem pode não apenas salvar um estranho esfaqueado, mas também se desvelar à cabeceira do ferido, com “rara dedicação”. Há algo perturbador, contudo, pois a fácies de Fortunato não corresponde aos seus gestos: “Os olhos eram claros, cor de chumbo, moviam-se devagar, e tinham a expressão dura, seca e fria”. Para completar o quadro, ficamos sabendo que a vítima da agressão encontra apenas desdém quando, recuperada, vai agradecer ao seu salvador. E o leitor se pergunta: Por que, então, ele foi bom? Por que despreza com arrogância o agradecimento?
Anos depois, quando Garcia começa a se tornar íntimo desse enigmático personagem e passa a frequentar a casa que ele divide com a esposa, Maria Luísa, a lembrança da dedicação de Fortunato retorna, e o amigo o descreve com elogios à mulher atenta. Esta, que em relação ao marido tem “uns modos que transcendiam o respeito e confinavam na resignação e no temor”, ouve a história, primeiro “espantada”, depois “risonha e agradecida”. A reação do marido, contudo, é diversa. Fortunato complementa o relato de Garcia com a narração da visita do esfaqueado; e o faz de maneira incomum, rindo muito. E o narrador observa: “Não era o riso da dobrez. A dobrez é evasiva e oblíqua; o riso dele era jovial e franco”. Parece haver, realmente, uma terrível contradição nesse homem: na aparência caridoso, é capaz de zombar de quem ele próprio ajudou.
Esse é o centro da trama psicológica criada por Machado, para quem os homens ocultam, sempre, uma segunda intenção em cada gesto. A bondade de Fortunato, o leitor descobrirá, guarda um propósito detestável – o bem que ele pratica possui um só objetivo: satisfazer a sua perversão. À medida que o conto se desenrola e a personalidade desse curioso benfeitor ganha novos contornos, o leitor acordará para uma espécie sui generis de mal, sem jamais poder acusar Fortunato de ser mau. Machado nos oferece a oportunidade de refletir sobre as possíveis gradações da busca do prazer, “um vasto prazer, quieto e profundo”, no qual não há “nem raiva, nem ódio”, mas que, forjado no que parece ao leitor um antagonismo atroz, transforma o personagem numa “redução de Calígula”. Portanto, como se trata de Machado, talvez Fortunato seja, de alguma forma, mau...
Em uma de suas crônicas, “Antonieta Rudge”, Manuel Bandeira diz que o autor de Dom Casmurro tem “o gosto doentio de espiar o sofrimento alheio”. E completa: “A psicologia dura, derrotista, insultante de quase toda a obra. Sempre o móvel egoísta, e ainda que limpo, inconfessável. [...] Em suma eu achava, e ainda hoje acho, que Machado de Assis era um monstro. Um monstro que não fazia mal a ninguém, que nunca haveria de fazer mal a ninguém, mas não obstante um monstro”. Ora, quem sonda as filigranas dos homens está fadado a descobrir monstruosidades e santidades, mas isso não faz dele, necessariamente, um monstro ou um santo. O “gosto doentio” de Machado resume-se à investigação das zonas escuras do ser humano, nada mais. E se ele encontra máculas, também consegue ver, na mesma pessoa – neste caso, em Fortunato –, o devotamento amoroso.
Na verdade, nada é simples ou plano no Bruxo do Cosme Velho. Ele afastou de si as generalizações – e não se satisfez apenas com a busca do que Nabokov chamava de “o pormenor incongruente”, mas a forma por meio da qual expressou suas descobertas também fugiu a todos os estereótipos, pois é possível ouvir ao fundo, enquanto o leitor se revolta ou escandaliza, o seu riso algo diabólico, sempre instigante, que nunca julga, jamais condena.
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