abril 30, 2009

Estranhos Sísifos

O prazer da leitura – mas não de qualquer leitura. Refiro-me àqueles livros em que nos reencontramos, como se estivéssemos, durante longo tempo, apartados do que é essencial para nós, sem que percebêssemos esse estado, essa condição menor. Então, por acaso, abrimos certa obra – e mal a primeira página foi encerrada, as sinapses, milhares delas, começam a espocar. Saltamos, de página a página, impulsionados pela febre. Quase um delírio, no qual nosso cérebro apenas reitera, incansável: “é isso!”, “exatamente!”, “perfeito!”. E quando, por algum inesperado motivo, nos damos conta de que avançamos dezenas de páginas sem fazer qualquer anotação, redescobrimos essa forma de amor à primeira vista, capaz de nos consumir em uma madrugada, sem que, para nosso desespero, consigamos chegar ao final do volume. Mas é somente o primeiro passo. Faz-se necessário retornar ao início, recomeçar a leitura, agora movidos pela pretensão de saborear lentamente cada uma das descobertas que nos hipnotizaram. Dissecá-las sem piedade, como se o corpo a ser estudado ainda se debatesse, preso à mesa de autópsia. É preciso, então, controlar nosso ímpeto e agir como o cientista que confere incansáveis vezes sua descoberta. A leitura da paixão, da fúria apaixonada, torna-se, assim, um exercício minucioso, um adágio – e, em nossas anotações, reformulamos a descoberta de outrem, transformando-a na verdade que, agora, nos pertence. Damos seqüência, assim, à incansável tarefa da palavra: transmutar-se a cada pensamento, a cada reflexão, conservando-se a mesma, mas desdobrando-se para dar vida a um novo estágio de consciência. Só quando esse exercício extenuante termina podemos dizer que realmente lemos, que somamos à nossa vida a experiência de alguém que se antecipou, sem saber, aos nossos pensamentos, aos nossos sonhos. Só então o ato de amor está completo. Mas, como sói ocorrer, restará sempre um engano, uma dúvida: não nos apossamos de tudo. Na verdade, grande parte do que nos empolgou ainda permanece lá, intocável, intraduzível. E se, passado algum tempo, reiniciarmos a leitura, um novo mundo se revelará. Esse é o fado dos verdadeiros leitores: somos estranhos Sísifos, condenados a um prazer infindável, devotados ao exercício que nos concede, poucas vezes, a magia da identificação.

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