agosto 08, 2007


O revolucionário


Preparando-se para sair, ele reclamou do frio, enquanto vestia o casaco disforme, lembrança de sua estada na Rússia, quando o partido o obrigara a permanecer vários meses em uma cidadezinha do interior, até que o impacto do golpe militar fosse devidamente analisado e "as coisas ficassem mais claras no Brasil".

Só a tela da tevê iluminava a sala. Ele soltou um grunhido de despedida à mulher, concentrada em acompanhar o capítulo da novela, e, ainda palitando os dentes, saiu para a rua.

O encontro daquela noite não seria no partido, mas em um prédio sórdido, ao lado da rodoviária, onde o aguardavam cinco companheiros. A pauta, fácil de ser resolvida: decidiriam uma maneira eficaz de compor duas ou três alianças no diretório, de forma a desmantelar o grupo independente.

A perna esquerda doía, mas ele tinha o hábito de fazer seu esqueleto obedecê-lo – afinal, tudo era uma questão de disciplina. Com o palito, retirava os restos de comida que ficaram entre os dentes, engolindo-os depois de mastigar um pouquinho.

A reunião não o preocupava. As táticas para conter os insatisfeitos, silenciar os mais audaciosos e seduzir os que sempre estão prontos a passar para o lado mais forte compunham os melhores capítulos do manual que ele e toda a velha guarda decoraram.

Escarafunchar os dentes do fundo obrigava-o a abrir a boca de maneira estranha. Mas quando largava o palito entre os lábios, tornava-se impossível saber se ele ria com malícia ou se aquelas expressões eram somente reflexos dos movimentos de sua língua, tentando alcançar um teimoso fiapo de carne que se agarrava à obturação.

Depois de alguns quarteirões, as dores alcançaram os quadris, mas acima das agulhadas repousava, sereno, o treinamento de jamais faltar ao dever. Não falharia. Não agora, depois de viver décadas pulando de fábrica a fábrica, aliciando simpatizantes para a causa e promovendo distúrbios ou greves. Como em tantas outras vezes, assim que acendesse o pavio, sairia de cena, pronto para ser usado em uma nova missão.

É certo que, no passado, as glórias pelos distúrbios bem-sucedidos ficaram no altar dos dirigentes. Mas quando pôde, não desperdiçou a chance de derrotar aquelas lideranças, incluindo seu melhor amigo, pois "os fins justificam os meios", e traí-lo representava um mal insignificante, se comparado ao mundo que ele tinha certeza de estar construindo, onde os povos viveriam unidos sob a bandeira da igualdade, "comandados pela única classe capaz de promover a revolução", assim ditava o manual.

O muro do quartel acompanhava seus passos naquele trecho. De volta da Rússia, ficara preso ali cerca de quinze dias, o que consolidou sua fama. Mas ninguém saberá o quanto ele próprio contribuiu para que se espalhasse a notícia das torturas e das humilhações, pois, na verdade, jamais encostaram sequer um dedo em sua pele branca e flácida. Nem mesmo o interrogaram, tamanha a sua insignificância.

E ao ser libertado, encontrou a chance de substituir os que estavam presos ou mortos. Gradativamente, ascendeu na organização clandestina, protegido por um emprego medíocre no comércio, pelo ar falsamente circunspecto e pelo silêncio ardiloso que os tolos acreditavam ser um sinal de sabedoria.

Na década de 1980, quando o novo partido surgiu, a antiga escola foi relegada a segundo plano, e ele teve de galgar os mesmos degraus do passado, agora obedecendo à cartilha na qual algumas das melhores palavras de ordem foram substituídas por uma só, tristemente repetida: "democracia".

O pedacinho de carne enfim se soltou. Espremendo os olhos como um animal que acaba de sair da toca e ainda não se acostumou à luz, ele observa, parado sob o semáforo, as janelas do prédio encardido. O vermelho e o verde se alternam na calva repleta de manchas. O venerável estrategista sorri, joga fora o palito mastigado e atravessa a rua, a caminho de uma nova traição.

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