Num país como o nosso, no qual a intelligentsia está, em sua quase absoluta maioria, apartada de qualquer preocupação metafísica, mas se tornou devota das suas próprias religiões marxistas ou niilistas, do relativismo e da crença, tão estreita quanto refutável, de que exclusivamente a ciência pode apresentar respostas aos anseios humanos; neste país, no qual grande parte da produção teológica católica se dedica a meras invencionices sociológicas e se deixa corromper por um secularismo nefasto, diluindo suas reflexões em nome do populismo, da subserviência a políticas de esquerda ou, pior, do desejo consciente de corromper os ensinamentos da Tradição e do Magistério; neste país, em que até mesmo o fato de alguém se autodefinir como católico tornou-se, nos supostos meios intelectuais, motivo de surpresa, mofa ou indignação; num país com tais características, a oportunidade de passar quatro noites estudando a vida e a obra do teólogo Joseph Ratzinger, hoje Papa Bento XVI, surge – perdoem-me o chavão – como um oásis. E foi exatamente desse oásis que pude desfrutar, esta semana, graças à iniciativa do Instituto Internacional de Ciências Sociais, que trouxe ao Brasil o filólogo, teólogo e filósofo padre Pablo Blanco Sarto, professor adjunto do Departamento de Teologia Sistemática da Universidade de Navarra, criador do Foro de Estudos Joseph Ratzinger e autor de vários livros sobre Bento XVI, entre eles, os dois mais recentes: Benedicto XVI – el Papa alemán e La teologia de Joseph Ratzinger: una introducción.
julho 30, 2011
Pablo Blanco Sarto e o pensamento de Bento XVI
julho 24, 2011
Inglês de Sousa – acima do naturalismo
A coletânea Contos amazônicos reúne a melhor produção do paraense Inglês de Sousa, para fins didáticos classificado, entre as escolas literárias, como naturalista. Contudo, a desdizer tal classificação, trata-se do seu livro menos preso ao naturalismo, apresentando características realistas e, também, fantásticas. Reunidas em 1893, essas narrativas conformam a despedida do autor em relação à escrita ficcional, pois ele continuaria escrevendo, mas exclusivamente obras jurídicas, incluindo-se o Projeto de Código Comercial, de 1912.
Para nossa felicidade, esses contos, publicados três anos depois de O Cortiço, não apresentam, no geral, a preocupação ou a necessidade de provar teses sociológicas com base na biologia, denunciar vícios supostamente hereditários ou condenar a humanidade ao fado da corrupção moral, as chamadas “superstições do naturalismo”, segundo Sérgio Buarque de Holanda (no clássico ensaio “Inglês de Sousa: O Missionário”), que agradavam sobremaneira a Aluísio Azevedo.
Trata-se de uma coletânea desigual, cuja epígrafe é formada por alguns versos de “Adozinda”, de Almeida Garret, escolha reveladora das motivações do autor, pois o poema romântico nasce da pesquisa sobre poesias trovadorescas e outras composições do romanceiro popular português, enquanto os contos do brasileiro estão repletos de referências a lendas, costumes e episódios históricos da região amazônica.
Poder descritivo
Composto de oito narrativas curtas e uma noveleta de cunho histórico, “O rebelde”, o livro inicia com “Voluntário”, título que define, de maneira irônica, o recrutamento forçado durante o período da Guerra do Paraguai, tema central do conto. Encontramos aqui as frases de “ritmo sereno e ondulante” e o “espraiamento das palavras com breve estação nos incidentes ora curtos, ora longos” que, segundo Aurélio Buarque de Holanda (no prefácio à 3ª edição de O Missionário), o autor teria aprendido com Eça de Queirós. Mas o texto ainda está contaminado de determinismos típicos da escola naturalista, como ao descrever os moradores ribeirinhos:
É naturalmente melancólica a gente da beira do rio. Face a face toda a vida com a natureza grandiosa e solene, mas monótona e triste do Amazonas, isolada e distante da agitação social, concentra-se a alma num apático recolhimento, que se traduz externamente pela tristeza do semblante e pela gravidade do gesto.
O caboclo não ri, sorri apenas; e a sua natureza contemplativa revela-se no olhar fixo e vago em que se leem os devaneios íntimos, nascidos da sujeição da inteligência ao mundo objetivo, e dele assoberbada. Os seus pensamentos não se manifestam em palavras por lhes faltar, a esses pobres tapuios, a expressão comunicativa, atrofiada pelo silêncio forçado da solidão.
Inglês de Sousa também se mostra panfletário em diferentes trechos, por exemplo, ao acusar o governo brasileiro de não compreender o que Solano Lopes realmente era: “Uma coragem de herói, uma vontade forte, uma inteligência superior ao serviço de uma ambição retrógrada”. E perde-se numa retórica enfadonha, fazendo exatamente o que prometera não fazer: “Carregar nos tons sombrios do quadro de miséria do proletariado brasileiro naqueles tempos calamitosos”.
À parte tais exageros, ele apresenta um pouco de suas melhores qualidades: timing para criar falsas esperanças no leitor, fazendo-o duvidar que a história realmente acabará mal; e inegável poder descritivo, atento aos pormenores que iluminam situações, como nestes ridículos soldados do Império:
As portas e as janelas das ruas por onde passava a nova leva de recrutas estavam apinhadas de gente. As mulheres e as crianças corriam a vê-los de perto, conservando-se, porém, a uma distância respeitável dos guardas nacionais, que marchavam pesadamente, acanhados, vestidos na sua jaqueta de velho pano azul, quase vermelho, e vexados com a comprida baioneta colocada muito atrás, a bater-lhes os rins num compasso irregular, conforme os acidentes das ruas mal calçadas.
E neste outro trecho – início de um longo e melancólico parágrafo –, no qual o narrador quase se coloca, por um brilhante momento, no lugar dos recrutados que partem:
Quando as canoas largaram da praia, as mulheres romperam num clamor; e os tapuios, acocorados ao fundo da igarité que os separava da ribanceira, seguiam com a vista a terra que recuava, fugindo deles. Tinham os olhos secos, mas amortecidos.
Saliente-se também, neste primeiro conto, o final terrível, em que uma inocente quadrinha popular intensifica o drama da tapuia enlouquecida.
Um cético
“A feiticeira” principia de forma peculiar, como se o narrador falasse na sequência de outros contadores de histórias, todos reunidos ao pé do fogo. Essa voz, que chega a ser agradavelmente coloquial, constrói bem o protagonista, o incrédulo e zombeteiro tenente Antônio de Sousa, e Maria Mucoim, a feiticeira, figura clássica, digna de estar nas mais tétricas narrativas de mistério.
O tenente, “vítima de sua leviandade”, ousará enfrentar a Mucoim; e quando sai para o derradeiro encontro, a própria natureza prenuncia o seu destino. Natureza, aliás, que se rebela completamente no final, quando pesadelo e fantástico se instalam, conduzindo o cético Antônio a uma situação funesta.
Inconvincente
Na narrativa seguinte, “Amor de Maria”, o mal também prevalece. O narrador, contrapondo-se a seu colega do conto “A feiticeira”, pretende que sua história seja melhor, mais verossímil. Contudo, o frívolo Lourenço de Miranda e Mariquinha, torturada pelo ciúme, não convencem – e as melhores cenas, como a do amanhecer em que a jovem é embalada na rede pela velha e imprudente Margarida, não enveredam para um final realmente dramático, capaz de nos comover ou aterrorizar.
Fantasmagoria
“Acauã” segue pelo mesmo caminho, infelizmente, apesar do início fantasmagórico, impressionante, que lembra as melhores cenas de “A Salamanca do Jarau” e “A mboitatá”, lendas recontadas pelo gaúcho Simões Lopes Neto:
Raios caíram com fragor enorme, prostrando cedros grandes, velhos de cem anos. O capitão Jerônimo não podia mais dar um passo, nem já sabia onde estava. Mas tudo isso não era nada. Do fundo do rio, das profundezas da lagoa formada pelo Nhamundá, levantava-se um ruído que foi crescendo, crescendo e se tornou um clamor horrível, insano, uma voz sem nome que dominava todos os ruídos da tempestade. Era um clamor só comparável ao brado imenso que hão de soltar os condenados no dia do Juízo Final.
Os cabelos do capitão Ferreira puseram-se de pé e duros como estacas. Ele bem sabia o que aquilo era. Aquela voz era a voz da cobra grande, da colossal sucuriju, que reside no fundo dos rios e dos lagos. Eram os lamentos do monstro em laborioso parto.
O clima mágico se desfaz ao longo da narrativa, no entanto, e o tema lendário torna-se mero exotismo, com uma das personagens transformada num ser diabólico incapaz de convencer até mesmo o leitor menos assíduo às histórias da carochinha.
Bom humor
A Questão Christie, crise diplomática que envolveu Brasil e Grã-Bretanha – e durou de 1862 a 1865 –, é o tema de “O donativo do capitão Silvestre”. Na iminência de o Brasil ser invadido pelos ingleses – uma esquadra inglesa chegou a bloquear o porto do Rio de Janeiro –, os moradores de Óbidos, no interior do Pará, deixam-se levar pela histeria coletiva: “Os mais ignorantes tremiam de susto à ideia de ver surgir no porto de cima um navio de guerra de S. M. Britânica, pejado de canhões negros e ameaçadores”. O conto tem trechos prolixos, eivados de patriotada, mas o autor consegue captar o clima de loucura e a esperteza das lideranças políticas locais, que se aproveitam da crise para angariar fundos e reunir prosélitos. A narrativa termina com a excelente pilhéria do capitão Silvestre.
Infernal
Encontramos um bom número de preconceitos populares em “O baile do judeu” – festa evidentemente diabólica. O narrador, um divertido católico, sustenta a narrativa de maneira espirituosa e oferece bons trechos, como este, no qual um incógnito convidado dança com a mulher mais atraente da festa:
No meio destas e outras exclamações semelhantes, o original cavalheiro saltava, fazia trejeitos sinistros, dava guinchos estúrdios, dançava desordenadamente, agarrado a d. Mariquinhas, que já começava a perder o fôlego e parara de rir. O Rabequinha friccionava com força o instrumento e sacudia nervosamente a cabeça; o Carapanã dobrava-se sobre o violão e calejava os dedos para tirar sons mais fortes, que dominassem a vozeria; o Penaforte, mal contendo o riso, perdera a embocadura e só conseguia tirar da flauta uns estrídulos sons desafinados, que aumentavam o burlesco do episódio; os três músicos, eletrizados pelos aplausos dos circunstantes e mais pela originalidade do caso, faziam um supremo esforço, enchendo o ar de uma confusão de notas agudas, roucas e estridentes, que dilaceravam os ouvidos, irritavam os nervos e aumentavam a excitação cerebral, de que eles mesmos e os convidados estavam possuídos.
Assim, tudo se torna infernal nessa reunião festiva – mas, por razões que não vale a pena adiantar, será esse o último concorrido baile do judeu.
Religião e aguardente
Os críticos marxistas e a historiografia politicamente correta devem ter ataques de urticária ao ler a noveleta “O rebelde”, pois Inglês de Sousa resume a Cabanagem a um movimento “vítima de dupla alucinação: religiosa e patriótica”. Sua visão crítica surge nesta cena perfeita, na qual o romântico moderno vê a concretização dos ideais socialistas, enquanto as pessoas lúcidas só encontram crime e desvario:
[...] Uma centena de pessoas, homens, mulheres e crianças, caboclos na maior parte, negros e mulatos muito poucos, desembarcavam desordenada e ruidosamente. Os homens vestiam calças e camisas de algodão tinto em murixi vermelho, cobriam-se com grande chapéu de palha, com topes de duas cores, vermelha e negra, em forma de cruz. No peito da camisa tinham distintivo igual, e à cintura traziam um horroroso troféu de orelhas humanas, enfiadas em um embira, em ostentação de perversidade e valentia.
As mulheres trajavam saias e camisas da mesma fazenda de algodão, sendo somente as saias tintas em murixi, e sobre os amplos peitos morenos destacava-se a cruz de duas cores que distinguia os cabanos, inimigos dos maçons e dos portugueses. As crianças estavam quase todas nuas. Homens e mulheres [...] tinham fisionomia bestial e feroz e vinham armados de espingardas, terçados, chuços e espadas.
Toda aquela gente, num tumulto de desenfreada licença, ria e gritava, praguejava e rezava ladainhas, entrecortados de soluços aguardentados e de gestos de ameaça e de ódio que me causavam calafrios. [...]
É pena que certa loquacidade contamine a narrativa. Bons trechos, como o acima, acabam se diluindo numa lenga-lenga algo sentimental, em que certo mulato, herói da Revolução Pernambucana de 1817, enfrenta o dilema ético de apoiar os revoltosos ou proteger uma família de portugueses e o pároco da vila.
O melhor
Dois contos merecem atenção redobrada: “O gado do Valha-me-Deus” e “A quadrilha de Jacó Patacho”.
No primeiro, somos guiados por um narrador de tom coloquial agradavelmente ranzinza, cujo discurso é repleto de frases interpostas e autoelogios. Estilo, aliás, do qual Guimarães Rosa deve ter sorvido algumas boas doses. Trata-se do vaqueiro Domingos Espalha, famoso, segundo o que ele nos diz, por “conhecer as manhas do gadinho” e segurar-se “na sela sem estribos nem esporas”. Idoso, ele recorda quando foi contratado por Amaro Pais para recolher o gado na fazenda que este herdara de um padre: “As proezas de Amaro Pais tinham feito embravecer o gado, que, por fim, já ninguém era capaz de o levar para a malhada e ainda menos de o meter no curral [...]”. Incumbido, juntamente com outro vaqueiro, Chico Pitanga, de “tomar conta da fazenda, assinalar o gado orelhudo” e escolher “uma vaca bem gorda”, para ser assada na festa de S. João, os dois partem certos de que as tarefas serão cumpridas facilmente.
Encontrada a rês, começam os problemas. O inesperado e o fantástico surgem lentamente na narrativa – e o objetivo do trabalho sempre escapa aos dois vaqueiros, por mais que se esforcem:
Vimos perfeitamente o lugar onde o gado passara a noite, um grande largo, com o capim todo machucado, mas nem uma cabecinha pra remédio! Já tinham os diachos seguido seu caminho, sempre deixando atrás de si uma rua larga, aberta no capinzal, em direção à serra do Valha-me-Deus, que depois de duas horas de viagem começamos a ver muito longe, espetando no céu as suas pontas azuis. Galopamos, galopamos atrás deles, mas qual gado, nem pera gado, só víamos diante da cara dos cavalos aquele imenso mar de capim com as pontas torradas por um sol de brasa, parecendo sujas de sangue, e no fundo a serra do Valha-me-Deus, que parecia fugir de nós a toda pressa. Ainda dormimos aquela noite no campo, a outra e a outra, sempre seguindo durante o dia as pegadas dos bois, e ouvindo à noite a grande choradeira que faziam a alguns passos de distância de nós, mas sem nunca lhes pormos a vista em cima, nem um bezerro desgarrado, nem uma vaquinha preguiçosa! Eu já estava mesmo levado da carepa, anojado, triste, desesperado da vida, cansado na alma de ouvir aquela prantina desenfreada todas as noites, sem me deixar pregar o olho [...]; ambos com fome, já não podíamos mover os braços e as pernas, galopando, galopando por cima do rasto da boiada, e nada de vermos coisa que parecesse com boi nem vaca, e só campo e céu, céu e campo, e de vez em quando bandos e bandos de marrecas, colhereiras, nambus, maguaris, garças, tuiuiús, guarás, carões, gaivotas, maçaricos e arapapás que levantavam o voo debaixo das patas dos cavalos, soltando gritos agudos, verdadeiras gargalhadas por se estarem rindo do nosso vexame lá na sua língua deles. [...]
O que prometia ser facílimo torna-se, num crescendo, inalcançável. Sorrimos diante de cada nova dificuldade, mas, sob a camada de humor – não só nesse belo e hiperbólico parágrafo –, o inusitado transpira. A angústia se instala; o fracasso implacável assume a condição de protagonista. Nada se conclui – e, exatamente por esse motivo, a história é perfeita.
O conto “A quadrilha de Jacó Patacho” pode ser dividido em quatro seções. Principia com a descrição do velho Salvaterra e sua família, que experimentam o clima de absoluta tranquilidade noturna, logo após o jantar. Um ruído estranho, contudo, ouvido pela jovem Anica, filha de Salvaterra, quebra a paz. Ela e a mãe, mais lúcidas que o pai e os outros dois filhos, introduzem o receio ao verbalizarem seus temores. Do fundo das trevas surgirão os personagens que tornam o medo palpável. A partir desse momento, o leitor é preso numa gangorra emocional, pois simples características – certo olhar lascivo, um “riso alvar” – ou pensamentos podem nos levar da certeza à dúvida, e vice-versa: existe a quadrilha? Quem são esses homens? Os dois caboclos que surgem no meio da noite representam o mal ou são pobres trabalhadores a pedir abrigo?
A segunda seção começa com as divagações de Anica em seu quarto, preparando-se para dormir. Os temores crescem entre as sombras do cômodo. Enquanto a jovem se deixa levar por alucinações, o leitor já não sabe em que se apoiar. Então, do fundo da memória de Anica surge um pormenor esquecido. Lembrança após lembrança, ela se indaga sobre qual é a verdade – e atrás dela segue o leitor, perdido, desorientado, num vaivém que não se esgota nem mesmo quando a jovem toma sua decisão. A noite, antes escura, com um céu no qual “nuvens negras corriam para o sul como fantasmas em disparada”, agora está límpida: “A chuva cessara inteiramente, e do chão molhado subia uma evaporação de umidade, que, misturada ao cheiro ativo das laranjeiras em flor, dava aos sentidos uma sensação de odorosa frescura”. Mas essa natureza é apenas o símbolo antagônico por meio do qual o autor deseja, mais uma vez, nos desorientar, pois logo Anica é tomada de pavor, o que só aprofunda sua hesitação.
O grito da jovem dá início à terceira parte:
A sua voz nervosa repercutiu como um brado de suprema angústia pela modesta casinha, e o eco foi perder-se dolorosamente, ao longe, na outra margem do rio, dominando o ruído da corrente e os murmúrios noturnos da floresta.
Tem início a luta terrível, enquanto o brado dos cabanos selvagens – “Mata marinheiro! Mata! Mata!” – ecoa mais alto que o da jovem heroína. O embate desigual concretiza as piores expectativas – nossas e de Anica –, mas o narrador reserva ainda a quarta e última seção, um testemunho melancólico que amplia a tragédia familiar: poucas observações, mas capazes de conceder ao desespero os tremores do horror.
São duas narrativas soberbas – em termos de linguagem e estrutura –, que colocam toda a produção literária de Inglês de Sousa em segundo plano. Elas excedem, inclusive, as qualidades que Sérgio Buarque de Holanda elenca no ensaio já citado: “a tranquilidade honesta e quase descuidada de quem reconhece e sabe aceitar as próprias limitações” e a sábia escolha do vocabulário, capaz de dispor “sempre do termo justo para exprimir um comportamento ou para definir um personagem”. Dois contos que deveriam ser lidos e estudados não como exemplos da escola naturalista, pois estão muito acima dela, mas do que a literatura brasileira produziu, até hoje, de melhor.
julho 19, 2011
Poesia e silêncio
Como se descobre “que não é a razão que traz tristeza ou alegria”? O homem aberto às epifanias que podem nos engolfar é um místico – e também, escreva ou não, um poeta.
O fato de poetas e místicos viverem êxtases e descreverem seus momentos de arrebatamento, mas submetidos aos limites dos sentidos e dos signos da linguagem, em nada desmerece os resultados. Estes, ao contrário, apenas reafirmam que o homem “não poderá nunca suprimir de todo a ansiedade que o impulsiona para uma meta que todavia não pode ser alcançada no tempo”, como afirmou um sábio teólogo contemporâneo, Divo Barsotti – “il cercatore di Dio”.
No caso dos poetas, o texto que nasce de um arroubo, ainda que não se assemelhe, na forma, às descrições místicas que podemos encontrar, por exemplo, nos escritos de Santa Teresa de Ávila, revela a mesma “inadaptação do nosso psiquismo às experiências espirituais insólitas” – segundo a perfeita descrição de êxtase que São João da Cruz elaborou.
É nesse contexto que se inscreve “Of mere being”, de Wallace Stevens:
A palmeira no final da mente,
Além do pensamento último, se eleva
Na brônzea distância,
Um pássaro de penas de ouro
Canta na palmeira, sem sentido humano,
Nem sentimento humano, um canto estrangeiro.
Então compreende-se que não é a razão
Que traz tristeza ou alegria.
O pássaro canta. As penas brilham.
A palmeira paira no limiar do espaço.
O vento roça devagar seus galhos.
As penas de fogo do pássaro pendem frouxas.
O estranho pássaro de Stevens é certamente o mesmo que Keats ouviu, aquela ave que “não nasceu para a morte” e que já havia sido escutada “no triste coração de Rute, quando, ansiando pelo lar, ela ficou chorando em meio ao trigo do estrangeiro”. Um “canto estrangeiro”, diz Stevens, sem “sentido” ou “sentimento” humanos. Visão ou sonho que sonhei desperto?, pergunta-se Keats em seu “Ode to a Nightingale” – e o próprio poema é a resposta, a frágil composição que restou do súbito encantamento.
Não é diferente o assombro de Eugenio Montale:
Talvez uma manhã andando num ar de vidro,
Voltando-me, verei cumprir-se o milagre:
O nada às minhas costas, detrás de mim
O vazio, com um terror de bêbedo.
Depois como numa tela, acamparão de um jato
Árvores casas colinas para a ilusão costumeira.
Mas será tarde já; e eu partirei calado
Entre os homens que não se voltam, com o meu segredo.
O caminhante na manhã envolta de um brilho inusual vê algo que se assemelha ao ouro e à “brônzea distância” do poema de Wallace Stevens. E o que, a princípio, parece um ofuscamento, transforma-se na revelação difícil de suportar. O “segredo”de Montale é parte do preço da experiência mística: “Se o homem”, afirma Divo Barsotti, “pudesse alcançar a finalidade de sua vida no tempo, depois de o haver conseguido, recairia no vazio de uma vida que não teria mais sentido”. Não por outro motivo as descrições dos êxtases – de místicos e poetas – são, quase sempre, sucintas e sempre algo incomuns, quando não confusas: como descrever o transporte cuja violência ofusca os sentidos, bem como a consciência de si e da realidade exterior?
julho 05, 2011
Diálogo com o “Endymion”
A nova manhã é um dom graças ao qual afastamos a mortalha de nossas almas. O angustiado insone; o trabalhador que percorre, madrugada adentro, os corredores mal iluminados do imenso galpão; o solitário que aguarda um telefonema improvável; o dorminhoco acossado por pesadelos repletos de culpa; o jovem cuja ansiedade estilhaça o sono em dezenas de partículas que debilitam ao invés de revigorar; o noctívago que, satisfeito por qualquer vício, se aproxima de sua morada e vê, por um instante, no reflexo da janela, o sol nascer às suas costas, como a lembrá-lo de que o seu prazer jamais será completo – todos eles, como diz John Keats, “malgrado o desespero, a carestia cruel de nobres naturezas e os sombreados e malsãos caminhos abertos para a nossa busca”, todos eles podem, graças à manhã, reencontrar a promessa que a Beleza esconde nas coisas mais improváveis: “a majestade dos destinos que imaginamos para os mortos poderosos, os lindos contos que nós vemos ou ouvimos ou as árvores que lançam a dádiva da sombra às ovelhas sem mal”. Tudo respira – e não por uma “curta hora”, mas para sempre. Assim, no último domingo, quando os sinos tocaram, chamando para a missa, e eu não estava lá fora – em algum velho quarto, remoendo minhas frustrações, ou circundado de pessoas que riem como profissionais e apenas contam, umas às outras, suas ínfimas vantagens –, mas acolhido na penumbra e no silêncio, ouvindo as badaladas repercutirem pela nave, então entendi como cada mínimo gesto pode se tornar sagrado; e imaginando até onde o repique dos sinos alcançaria, lembrei-me dos versos do Endymion: se, “como as árvores que murmuram em torno a um templo logo estão preciosas como o próprio templo”, então, de algum modo, todas as formas de Beleza se uniam a nós, ali, concentradas naquele Sacrifício que nos aturde e alegra, que se renova e é irrepetível. A vida inteira estava ali, pronta a renascer, “luz que incita nossa alma” – e une-se “a nós de modo tão estreito, que existam sobre nós trevas ou fulgor, ela deve estar sempre conosco, ou morremos”.
julho 01, 2011
A minha prece, hoje
“Guarda-me, Senhor, com a Tua mão misteriosa – e não me abandones. Guia-me pelas pontes luminosas que atravessam o vertiginoso abismo, onde aprisionas a escuridão.” – Pär Lagerkvist